Voz da Póvoa
 
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Cinco Séculos de História Honram a Misericórdia de Vila de Conde

Cinco Séculos de História Honram a Misericórdia de Vila de Conde

Vila do Conde | 22 Maio 2021

A Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde foi fundada em 1510, com o objectivo de reduzir e combater as desigualdades sociais. Cinco séculos de permanente actividade e nunca se desviou dos princípios norteados pela sua fundação, nem dos fins a que se propôs atingir. Os tempos modernos não foram capazes de erradicar a pobreza, e as transformações sociais e económicas da sociedade portuguesa exigiram da instituição, a criação de serviços adequados às necessidades emergentes.

Rui Manuel Canastra de Azevedo Maia nasceu em 1962, em Vila do Conde. Licenciado em Engenharia Civil, entrou como Irmão da Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde em 1984, em 1990 tornou-se Mesário e no final do ano de 2020 foi eleito Provedor, sucedendo a seu pai Arlindo Maia.

“A Misericórdia de Lisboa foi fundada em 1498, pela Rainha Dª Leonor. Depois a necessidade de apoiar os mais necessitados fez nascer por outras cidades e vilas, novas Misericórdias, como aconteceu em Vila do Conde, 12 anos depois. A viagem já vai longa mas os objectivos mantêm-se e o seu crescimento é contínuo. Quando entrei como Mesário estava a acabar de construir a primeira obra de Lar, que foi inaugurado em 1991.Três décadas depois, o percurso da Misericórdia é incomparável. Neste mesmo período, Portugal cresceu muito no apoio social, tal como a função das misericórdias e das IPSS em geral. Sucederam-se as necessidades de apoio à terceira idade, à deficiência ou à infância. Ou seja, criamos áreas para dar resposta às pessoas com o apoio do Estado e a Misericórdia de Vila do Conde agarrou todas essas oportunidades que foram surgindo, porque localmente havia essa necessidade” revela o Provedor.
No entanto, qualquer investimento tem que ser bem estudado: “Depende sempre da situação, mas a maior parte dos projectos pensados precisam de um apadrinhamento governamental. Não adianta criarmos a obra e depois não ser sustentável. E quando se trata de criar serviços para apoiar carenciados, eles não se sustentam por si, é preciso sempre a ajuda do Estado. Esse auxílio é fundamental e tem que ser feito de acordo com as necessidades que o Estado vê contempladas. O que acontece muitas vezes é que as Misericórdias alertam o Governo para analisar as necessidades locais e com essa visão confirmada, se consiga de facto construir a obra e garantir o apoio à prestação do serviço a que se destina”.

Para Rui Maia, é preciso sempre calcular a questão de não dar um passo maior que a perna: “Essa é uma das grandes dificuldades nos dias de hoje. Muitas vezes dá-se o passo sem saber a sua dimensão, porque é preciso de facto dar assistência às pessoas. O Estado nem sempre tem conseguido acompanhar as necessidades financeiras do apoio que as instituições prestam. Isso tem trazido uma dificuldade grande para as IPSS, porque não são só os portugueses que têm perdido o poder de compra, com o passar dos anos as instituições de apoio social têm perdido poder financeiro, porque o Estado não tem acompanhado o aumento das despesas que as novas situações geram”.

E acrescenta: “Quando abrimos o Lar, 90% das pessoas eram autónomas e hoje, apenas cerca de 20% chegam nessa situação, os restantes chegam ou estão acamados. Quando findámos o Lar, a média de idade das pessoas que nos procuravam era de 65 a 70 anos e hoje, temos médias de idade de 85 e os 90 anos. Cuidar destas pessoas é muito mais dispendioso do que anteriormente. Como não há lugar para toda a gente nos lares, dá-se prioridade aos que precisam mais, normalmente pessoas com reformas baixas. Depois, como grande parte dos utentes deixaram de ser autónomas, é preciso fazer-lhe tudo, com mais gente a apoiar, mais enfermeiros e cuidados médicos. O Estado não acompanhou esta realidade. Tudo o que é acréscimo de despesa, fruto das condições em que as pessoas estão e da necessidade de um maior apoio efectivo, enfermeiros a tempo inteiro, psicólogos, assistentes sociais, um número elevado de fisioterapeutas e um número elevadíssimo de técnicos, que não sendo obrigatórios são fundamentais, na realidade o Estado não nos tem comparticipado devidamente”.

O apoio fora de portas é outra realidade da Misericórdia: “O Governo tem tentado implementar cada vez mais o apoio domiciliário porque sai mais barato e as pessoas não saem da sua residência. Enquanto tiverem mobilidade é possível dar esse apoio, mas quando as dificuldades e as limitações aparecem é muito complicado porque obriga a uma vigilância de 24 horas por dia. Quando as famílias trabalham de dia e não conseguem à noite prestar esses cuidados, acabam por institucionalizar essas pessoas”.

A Saúde é Cada Vez mais Uma Aposta da Misericórdia

 A Misericórdia de Vila do Conde assinou um protocolo com o Governo, que permite à instituição realizar consultas médicas e cirurgias, por conta do Serviço Nacional de Saúde: “Lutávamos há vários anos por esse protocolo, as chamadas consultas a tempo e horas. Ou seja, a quem está no SNS há mais de três meses à espera de uma consulta é dada a possibilidade de recorrer ao sector social da saúde ou ao sector privado para resolver o seu problema e a Misericórdia, finalmente, conseguiu entrar nesse grupo. Vamos começar a fazer as primeiras consultas e cirurgias resultantes desse protocolo, uma grande ajuda para a população da nossa região que tinha que se deslocar para o Porto, Riba d’Ave ou Esposende e outros locais mais distantes para poder ter esse apoio médico e de saúde”.

 O Provedor reconhece que historicamente as misericórdias sempre estiveram ligadas à prestação de cuidados de saúde: “Durante centenas de anos foi essa a principal missão. O apoio social tal como o conhecemos agora, nasceu uma década depois do 25 de Abril de 1974, com o pacto para o sector social. Na área da saúde, as misericórdias limitam-se a seguir o caminho das suas origens, prestar cuidados de saúde à população. Sentimos que em Vila do Conde isso era necessário, estando sempre subjacente o princípio de que a sustentabilidade financeira da instituição esteja garantida. Durante alguns anos conseguimos tirar alguns proveitos da área da saúde para alimentar o apoio social. Hoje, já não é bem verdade porque a saúde tem preços tão esmagados pelas seguradoras e pelo Estado que é quem paga a maior parte dos serviços, que de facto o dinheiro já não é tão compensatório. A área da saúde já não tem a rentabilidade que teve durante bastantes anos”.

Quanto à aquisição do Hotel Brasão, tem na sua origem uma razão sentimental: “O edifício foi pertença da Misericórdia durante muitos anos e chegou a estar alugado à Câmara Municipal. Para além da questão financeira, tinha um significado para a instituição. Sempre foi posição da Misericórdia não entrar em concorrência localmente. O Hotel estava a precisar de ser reformulado e nesse sentido foi colocado no mercado, não tendo aparecido ninguém com vontade de o fazer. A Misericórdia pensou recuperar aquele edifício, que é de boas memórias para a instituição, e também tirar proveito disso, estava a correr tudo bem financeiramente, até que apareceu esta pandemia, terrível para todos os sectores, inclusive para o turismo e a hotelaria”.

Rui Maia explica onde é que a pandemia travou as intenções da Misericórdia e até que ponto aumentou a despesa: “A pandemia veio trazer uma nova vida a todas as instituições e não fomos excepção. Tivemos que começar a gerir a Misericórdia de uma forma completamente diferente. Os recursos humanos foram altamente afectados por esta situação. Tivemos que nos reforçar, dar formação às pessoas para que a mobilidade no seu espaço de trabalho existisse. A pandemia obrigou também o funcionário a adaptar-se a novas funções em sectores que estavam carenciados de mão-de-obra e tínhamos utentes residentes que não os podíamos deixar para trás, nem abandonar. Esta nova gestão financeira que foi criada, com uma mentalidade diferente, os gastos para a protecção das pessoas, utentes e funcionários, foram brutais. Daria para fazer uma grande obra social com aquele dinheiro. Reforçámos os meios humanos, principalmente nos cuidados de saúde, ficámos com enfermeiros em todas as unidades onde tínhamos pessoas residentes, a cuidar dos nossos utentes e também a dar algum apoio aos nossos funcionários. É uma gestão muito centrada na saúde, para garantir os cuidados básicos às pessoas que estão na instituição. Os nossos colaboradores foram de facto a família que os nossos utentes precisavam porque os seus familiares directos tinham o acesso vedado. Foi um esforço grande de toda a gente, mas compensador”.

A Pandemia é Uma Lição Que Merece Ser Estudada

Rui Maia é também o Director do Grande Colégio da Póvoa de Varzim, mas o cancelamento das aulas acabou por facilitar: “Houve aqui uma grande disponibilidade para a instituição porque, felizmente, coincidiu com o encerramento das escolas. No período mais difícil que a Misericórdia atravessou com os seus utentes residentes, foi quando as escolas e os colégios fecharam devido ao estado de emergência. Isso permitiu estar aqui a tempo inteiro e foi bem preciso para toda a gente. Recordo que a área da saúde durante o confinamento, teve uma quebra bastante significativa na procura. As pessoas tinham medo de vir tratar-se, alguns problemas também deixaram de os ter, mas outros ficaram adiados, os centros de saúde estavam fechados, não referenciavam exames. Houve uma série de acontecimentos para que a acção da saúde estivesse reduzida nesse período. Os nossos médicos disponibilizaram-se e tivemos vários a tempo inteiro a fazer o acompanhamento dos nossos utentes”.

Quanto ao Grande Colégio teve que se adaptar a aulas à distância, um trabalho extra: “Quem faz as coisas com amor à causa, tem sempre esta dedicação enorme a tudo. O nosso segredo foi ver noutros países o que estava a acontecer e felizmente, a pandemia chegou mais tarde a Portugal, dando tempo a prepararmo-nos. Quando fechámos o Colégio, no dia seguinte tínhamos aulas online para dar, já nos tínhamos preparado, alguns alunos até já tinham ensaiado no colégio, o ensino à distância. Na Misericórdia também conseguimos rapidamente nos adaptar. Criámos uma unidade Covid, com 19 camas articuladas, equipadas com oxigénio, com tudo preparado para receber os nossos utentes que não estando em situação aguda libertavam o hospital”.

Num ano dramático, Rui Maia reconhece as ajudas do Estado, embora insuficientes: “Penso que a Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes, tem um perfeito conhecimento da realidade. Esteve sempre muito activa e próxima de todas as situações. Foi mudando e actualizando a maneira de agir e fez sair nesta pandemia, alguns despachos e portarias que ajudaram as instituições, na contratação de trabalhadores, através de um programa criado para o efeito. Deu um reforço extra às instituições de 2% no apoio social, naquilo que era a comparticipação do Estado. Não chegou, mas foi um sinal de ajuda para o esforço que as instituições estavam a fazer. Penso que a Ministra contactou com a realidade das misericórdias e reconheceu que, se não houve em Portugal o caos que existiu noutros países, se deveu muito à acção das IPSS que cuidaram dos seus utentes e não os largaram nos hospitais como aconteceu em outros países. A ministra tem essa noção, sabe que a terceira idade em Portugal, nos lares teve dos índices mais baixos de mortalidade de toda a Europa”.

O novo Provedor participou recentemente em Fátima, numa reunião da União das Misericórdias Portuguesas: “As 398 Misericórdias estão filiadas na União, o que lhe dá muita força em termos de representatividade, quer no sector social ou da área da saúde, junto do Governo para negociar os acordos financeiros e os aumentos anuais. Para além disso, a União das Misericórdias tem um conjunto de apoios aos seus associados, na área jurídica, da formação, da saúde, na área técnica ou do projecto, na certificação da qualidade, ou seja, uma série de gabinetes técnicos que dão apoio às misericórdias e isso é também uma das forças da União. A sessão de acolhimento em Fátima, por um lado foi para colocar os novos Provedores à vontade quanto à União das Misericórdias, para que possam expor os seus problemas. Já tinha ido a várias assembleias da União, mas fiquei a conhecer coisas novas”. 

Há Sempre Novos Projectos na Calha da Misericórdia

“Há muitas apostas para o futuro, mas vamos ver se temos unhas para tocar essas guitarras. Fizemos algumas sugestões à União das Misericórdias Portuguesas, para que as pudessem levar ao Plano de Recuperação e Resiliência, que o país montou com a bazuca. Um programa que, inicialmente, tinha muito pouco apoio para a área social. Por isso, alocarmos algumas ideias que achávamos necessário. Sabemos que a rede de Cuidados Continuados é insuficiente em Portugal, são precisas mais 10 mil camas, mas também é preciso que as 8 mil a funcionar sejam sustentáveis, e não são. Neste momento, o que o Estado paga não cobre as despesas. É preciso reequilibrar as contas das unidades que praticam este serviço e fazer com que elas sejam viáveis, para que se possa alargar a rede. A nível da terceira idade é preciso um investimento muito forte na área da demência. Cada vez mais, as pessoas são demenciadas, nós no Lar temos 70 por cento das pessoas com demência, é a média nacional. Só há um ou dois lares no país, feitos de raiz para a demência. É preciso adaptar, criar e ter mais corpo técnico, mas não é com a comparticipação actual que a Segurança Social paga. É preciso obras novas e recursos novos para a sustentabilidade destas áreas. E a Misericórdia de Vila do Conde tem terreno e tem projecto para fazer um Lar para a terceira idade, com doenças degenerativas, nomeadamente Alzheimer ou Parkinson”. Esclarece.

E Rui Maia acrescenta: “Existe uma forte vontade do Estado em dar uma cobertura total na área da deficiência em Portugal, que neste momento não está totalmente abrangida. Sabemos que na área juvenil não há de facto locais para colocar deficientes profundos e a Misericórdia estaria disponível para criar um Lar com essas valências. Depois, foi sempre apanágio das misericórdias, ao longo de cinco séculos, dar abrigo a quem dele precisava. Não há um mercado de habitação, de arrendamento a preço justo, para que as pessoas se possam fixar em cidades como Vila do Conde ou Póvoa de Varzim, cidades de beira-mar. É incomportável pagar a reda de um T1 por 600 euros ou 700 euros, em Vila do Conde, por um casal que ganha duas vezes 600 euros. A Misericórdia tem terrenos e projectos na Câmara para criar um sistema de construção de habitação para arrendamento com rendas condicionadas, de preço justo e acessível, em função do valor patrimonial do imóvel, permitindo regular um pouco o mercado de arrendamento local e ajudar a fixar a população jovem nesta região. Se formos contemplados com um apoio, avançaremos com o projecto”.

Ser Provedor de uma instituição com cinco séculos de história, “é uma responsabilidade enorme, mas também uma grande honra. Conseguir estar numa instituição que serve e vive para os outros, é descobrir que ao servir os outros, tanto servimos utentes como funcionários, ou seja, também criamos emprego. Ter a história que temos, incentiva-nos todos os dias a trabalhar com o entusiasmo que a vida nos é capaz de oferecer”.

Por: José Peixoto

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