Voz da Póvoa
 
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PEDRO – Uma Maravilha de Paz

PEDRO – Uma Maravilha de Paz

Vidas | 23 Junho 2025

 

            Vivemos um tempo tão odioso que só uma maravilha poisada no papel por António Lobo Antunes e surripiada por mim (creio não merecer nenhum castigo) vos entrego à leitura e reflexão.

PEDRO

Hoje, catorze de novembro, é o dia dos anos do meu irmão Pedro, uma das pessoas que mais amei no mundo, o único de nós que saiu moreno, de cabelo preto, quase sempre calado. Nunca invejou ninguém: era livre. Nunca disse mal de ninguém: era livre. Nunca discutiu com ninguém: era livre. Fez sempre, desde criança, o que quis: era livre. Não lhe interessava o dinheiro, nem o sucesso, nem o aplauso dos outros. Não criticava fosse quem fosse. Não falava mal de ninguém. Misterioso, secreto, muito raramente mostrava o que sentia e, apesar do seu silêncio imperturbável, percebe-se que gostava de nós, sem palavras, sem pieguices,

sem exibir emoções. Não se queixava de nada conforme, aparentemente, não se zangava com quase nada.

A pouco e pouco os pais foram-se apercebendo que não valia a pena enervarem-se com ele. Não lhes respondia que não, concordava sempre.

-- Sim, mãe, sim pai

   mas apenas fazia o que lhe dava na gana,

   sem argumentar.

-- Isto não é hotel, Pedro

-- Sim, mãe

-- O jantar é às oito e meia, Pedro

-- Sim, mãe

Telefonava a dizer que chegava mais tarde, a mãe

-- Mas onde é que tu estás, Pedro?

-- Do outro lado da linha, mãe

e como é que se lhe podia ralhar depois disto?

Aliás era inútil ralhar-lhe porque ele não protestava. No fim da descompostura concordava sempre

--Sim, mãe

numa serenidade amável  que impedia exaltações  e castigos. Uma ocasião fiz-lhe uma coisa horrível: tinha pedido que fosse lá abaixo à mercearia comprar-me papel para escrever, eu com catorze anos e ele com onze, respondeu-me tranquilamente sentado no tapete, a brincar com não sei quê

--Não vou

calmíssimo

-- Não vou

eu ameacei, com medo que, indo eu à mercearia,  se me acabasse a inspiração

-- Se não vais digo ao pai que tu fumas

o Pedro nem se deu à perda de tempo de falar,  indiferente àquela  maldade estúpida

(O que eu continuo a arrepender-me dessa sacanice)

ameacei-o de novo

-- Se não vais digo ao pai que fumas

ele continuou a brincar, completamente  nas tintas, tive de ir lá buscar o papel e a inspiração  acabou -se de facto, à hora de jantar o pai sentou -se à cabeceira,  eu furioso com a morte de uma obra prima, interrompi o silêncio da sopa

-- Pai o Pedro fuma

o silêncio,  se possível,  aumentou ainda mais, à medida que  eu começava  a torcer-me de remorsos

(fui um cabrão)

enquanto o pai para ele, na esperança que o Pedro negasse

--Tu fumas Pedro?

Novo silêncio enquanto eu com ganas de me enforcar no candeeiro do tecto

( nunca na vida fui tão cabrão)

no silêncio a voz do pai a insistir

-- tu fumas, Pedro?

esperando  que o Pedro negasse, pedindo a Deus que o Pedro negasse, o pai que odiava a mentira, suplicando que o Pedro negasse, o Pedro na tranquilidade  de sempre

‐- Fumo, pai

Mais silêncio durante o qual o pai me olhou com ódio, o pai de novo, num suspiro

-- Tu fumas, Pedro?

o Pedro na mesma paz inalterável

-- Fumo, pai

Um silêncio ainda mais comprido, que eu devia ter aproveitado para me suicidar, o pai num suspiro

-- Poisa a colher no prato e espera-me lá em cima

o Pedro, na paz do Senhor, poisou a colher e subiu as escadas, o pai levantou-se vertendo um olhar suspenso  na minha direcção enquanto  atirava o guardanapo para a toalha, voltou passados  minutos a detestar-me, o Pedro não voltou, no fim do jantar mais horrível  da minha vida levantamo-nos cada um para seu lado, a porta do quarto do Pedro estava fechada, encontrei-o na manhã seguinte antes de sairmos para o liceu,  ele falou-me como se nada tivesse acontecido,  e o pai demorou dias sem olhar para mim, eu demorei  dias sem conversar com ninguém,  feito em merda pela minha filha da putice e o Pedro seguia igual. Não sei se me perdoou: sei que esqueceu, e continuou a amar-me muito, conforme eu o amava muito a ele. Que eu soubesse não odiava ninguém: era um miúdo livre. Quando morreu saí do quarto dele no hospital porque o meu irmão Nuno me trouxe abraçado a dizer-me

-- Anda bebé, anda meu bebé

de maneira  que além de filho dos meus pais nesse dia fui filho do Nuno. E gostei.

Manos queridos.

A maior manifestação de amor entre nós era fazermos Chichi juntos, à noite, para a cascata.

Agora mijo sozinho.

INFELIZMENTE.

 

ANTÓNIO LOBO ANTUNES✍

"As Outras Crónicas "

Fotos: Direitos Reservados

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