Vivemos um tempo tão odioso que só uma maravilha poisada no papel por António Lobo Antunes e surripiada por mim (creio não merecer nenhum castigo) vos entrego à leitura e reflexão.
PEDRO
Hoje, catorze de novembro, é o dia dos anos do meu irmão Pedro, uma das pessoas que mais amei no mundo, o único de nós que saiu moreno, de cabelo preto, quase sempre calado. Nunca invejou ninguém: era livre. Nunca disse mal de ninguém: era livre. Nunca discutiu com ninguém: era livre. Fez sempre, desde criança, o que quis: era livre. Não lhe interessava o dinheiro, nem o sucesso, nem o aplauso dos outros. Não criticava fosse quem fosse. Não falava mal de ninguém. Misterioso, secreto, muito raramente mostrava o que sentia e, apesar do seu silêncio imperturbável, percebe-se que gostava de nós, sem palavras, sem pieguices,
sem exibir emoções. Não se queixava de nada conforme, aparentemente, não se zangava com quase nada.
A pouco e pouco os pais foram-se apercebendo que não valia a pena enervarem-se com ele. Não lhes respondia que não, concordava sempre.
-- Sim, mãe, sim pai
mas apenas fazia o que lhe dava na gana,
sem argumentar.
-- Isto não é hotel, Pedro
-- Sim, mãe
-- O jantar é às oito e meia, Pedro
-- Sim, mãe
Telefonava a dizer que chegava mais tarde, a mãe
-- Mas onde é que tu estás, Pedro?
-- Do outro lado da linha, mãe
e como é que se lhe podia ralhar depois disto?
Aliás era inútil ralhar-lhe porque ele não protestava. No fim da descompostura concordava sempre
--Sim, mãe
numa serenidade amável que impedia exaltações e castigos. Uma ocasião fiz-lhe uma coisa horrível: tinha pedido que fosse lá abaixo à mercearia comprar-me papel para escrever, eu com catorze anos e ele com onze, respondeu-me tranquilamente sentado no tapete, a brincar com não sei quê
--Não vou
calmíssimo
-- Não vou
eu ameacei, com medo que, indo eu à mercearia, se me acabasse a inspiração
-- Se não vais digo ao pai que tu fumas
o Pedro nem se deu à perda de tempo de falar, indiferente àquela maldade estúpida
(O que eu continuo a arrepender-me dessa sacanice)
ameacei-o de novo
-- Se não vais digo ao pai que fumas
ele continuou a brincar, completamente nas tintas, tive de ir lá buscar o papel e a inspiração acabou -se de facto, à hora de jantar o pai sentou -se à cabeceira, eu furioso com a morte de uma obra prima, interrompi o silêncio da sopa
-- Pai o Pedro fuma
o silêncio, se possível, aumentou ainda mais, à medida que eu começava a torcer-me de remorsos
(fui um cabrão)
enquanto o pai para ele, na esperança que o Pedro negasse
--Tu fumas Pedro?
Novo silêncio enquanto eu com ganas de me enforcar no candeeiro do tecto
( nunca na vida fui tão cabrão)
no silêncio a voz do pai a insistir
-- tu fumas, Pedro?
esperando que o Pedro negasse, pedindo a Deus que o Pedro negasse, o pai que odiava a mentira, suplicando que o Pedro negasse, o Pedro na tranquilidade de sempre
‐- Fumo, pai
Mais silêncio durante o qual o pai me olhou com ódio, o pai de novo, num suspiro
-- Tu fumas, Pedro?
o Pedro na mesma paz inalterável
-- Fumo, pai
Um silêncio ainda mais comprido, que eu devia ter aproveitado para me suicidar, o pai num suspiro
-- Poisa a colher no prato e espera-me lá em cima
o Pedro, na paz do Senhor, poisou a colher e subiu as escadas, o pai levantou-se vertendo um olhar suspenso na minha direcção enquanto atirava o guardanapo para a toalha, voltou passados minutos a detestar-me, o Pedro não voltou, no fim do jantar mais horrível da minha vida levantamo-nos cada um para seu lado, a porta do quarto do Pedro estava fechada, encontrei-o na manhã seguinte antes de sairmos para o liceu, ele falou-me como se nada tivesse acontecido, e o pai demorou dias sem olhar para mim, eu demorei dias sem conversar com ninguém, feito em merda pela minha filha da putice e o Pedro seguia igual. Não sei se me perdoou: sei que esqueceu, e continuou a amar-me muito, conforme eu o amava muito a ele. Que eu soubesse não odiava ninguém: era um miúdo livre. Quando morreu saí do quarto dele no hospital porque o meu irmão Nuno me trouxe abraçado a dizer-me
-- Anda bebé, anda meu bebé
de maneira que além de filho dos meus pais nesse dia fui filho do Nuno. E gostei.
Manos queridos.
A maior manifestação de amor entre nós era fazermos Chichi juntos, à noite, para a cascata.
Agora mijo sozinho.
INFELIZMENTE.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES✍
"As Outras Crónicas "
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