Voz da Póvoa
 
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Liberdade Condicionada ao Trabalho Entre Reclusos

Liberdade Condicionada ao Trabalho Entre Reclusos

Vidas | 27 Janeiro 2020

Manuel Carneiro da Costa Maia nasceu em 1949, em Paços de Ferreira, e passou a viver na Póvoa de Varzim há sete anos. Fez uma pós-graduação em Criminologia e foi assistente social, durante 30 anos, tendo efectuado serviço nos estabelecimentos prisionais de Paços de Ferreira, Santa Cruz do Bispo e Custóias. Filho de lavradores, entre o cultivo e a arranca, aprendeu a espantar pardais para que as sementeiras, como o milho, vingassem. Começou a escrever versos aos 14 anos e entre livros de poesia publicou em 1989 o ensaio ‘Delinquência – Textos a Pretexto’.

“A minha infância em Paços de Ferreira foi passada nos trabalhos do campo. O meu pai era lavrador e punha-me a vigiar o milho para não deixar os pardais comerem. Levava uma lata e um pau, ou uns testos velhos, mas como eu já tinha um espírito científico, em vez de enxotar os pardais, punha-me a observá-los para perceber como é que um pássaro tão pequenino consegue engolir um grão de milho. Eu deixava comer à vontade e ele ia chamar a família toda. Um dia peguei numa ratoeira de ratos e armei. Em vez de pardais apanhei três frangos, de uma vez só. Fiquei assustado porque não sabia como explicar o sucedido. Então, decidi dizer a uma empregada para fazer um arroz de cabidela e uma canja para dar a uma tia, que na altura estava muito doente. Apanhei muita tareia pelas asneiras que fazia”, recorda.

Algum tempo depois de cumprir o serviço militar, em Angola, Manuel Maia foi trabalhar para o estabelecimento prisional de Paços de Ferreira, na altura chamado Cadeia Central do Norte. “Comecei como assistente social, em Fevereiro de 1975. Nove anos depois vim para Custóias, onde estive mais seis anos, e até me aposentar trabalhei 15 anos na Cadeia de Santa Cruz do Bispo. Quando me iniciei na profissão, uma das coisas que mais me chocou foi a juventude dos reclusos, a grande maioria tinha entre 18 e 35 anos, um desperdício de mão-de-obra. Outra coisa que me chocou foi o facto de os guardas tratarem o ser humano por um número. Então, disse ao director que iria chamar pelo nome, porque era despersonalizante e massificante. O director concordou, mas passados três meses eu estava a tratá-los pelo número. Tinha vários reclusos com o mesmo nome e acabei a dar razão aos guardas”, esclarece.

O trabalho nos serviços prisionais acabou por ser uma motivação e ao mesmo tempo uma aprendizagem: “Recordo-me de ter organizado vários jogos de futebol entre reclusos e órgãos de comunicação social, como a SIC, a TVI ou o jornal Público. Organizei também jogos com as meninas do Boavista, que na altura eram campeãs nacionais de futebol feminino. Eu fazia uma selecção e tinha uma conversa de balneário. O primeiro jogo foi dentro do estabelecimento prisional e depois fomos jogar ao terreno do Boavista. Isso implicava uma certa logística, mas eu sabia que os reclusos não me iam deixar mal. Ao maior corrécio, que fazia a vida negra a toda a gente na cadeia, dei-lhe a braçadeira de capitão. Disse-lhe que ele tinha que ter a equipa na mão e se alguém se portasse mal tinha que me avisar, para ser retirado do campo. Nunca me deixou ficar mal. Depois disso fiz um campeonato com todas as forças militares e militarizadas”.

A Cadeia de Santa Cruz do Bispo traz à memória de Manuel Maia algumas curiosidades entre os reclusos. “Neste estabelecimento prisional havia mais de cem vacas e vitelos. O curioso é que os reclusos, que cuidavam das vacas, davam-lhes nomes femininos, como Joana, Maria, Alice, Mafalda. Diziam que era para não esquecerem o nome das suas mulheres. Santa Cruz do Bispo era uma cadeia especial. Praticamente junto à vacaria não tinha muros. Havia um ponto em que em vez de subir muros era preciso saltar, era em socalco. Nós sabíamos que havia ali uma tasca e os reclusos que tomavam conta da vacaria e pernoitavam por lá iam beber um copo, mas regressavam sempre. Nunca fugiu nenhum. Eu sou a favor do tratamento pelo trabalho. Se um indivíduo era um bom mecânico cá fora porque não aproveitá-lo lá dentro? Ele agradecia porque ajudava a passar o tempo”.
E conclui: “Depois de me aposentar o meu passatempo favorito é ler, sobretudo psicologia e sociologia. Hoje são duas ciências que parecem ter-se unido porque se fala muito em psicologia social”.

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