No 1º momento em que me é comunicado por V. Excia., Senhor Presidente da Câmara Municipal, a pretensão de me atribuir a Medalha de Reconhecimento Poveiro, grau prata, meus olhos marearam e um prateado lacrimejo os lubrificou.
Um misto de espanto e de beleza talhou em mim o fogo do inesperado, e com ele o manifesto aceite de uma honraria metamorfoseada na poética de uma vida espelhando e espalhando a poesia referente à Póvoa de Varzim, nos vários horizontes do mundo.
E, fiquei muito feliz por também saber que a proposta do Senhor Presidente, foi aprovada por todos os vereadores que compõem o executivo. Para todos eles, também, o meu muito obrigado.
Senhor Presidente da CM Póvoa de Varzim, aqui estou e muito grato a V. Excia. pela concessão de tão honrosa distinção. Nela coloco a alma de todos os poveiros.
Sinto-me, ainda hoje, o menino dos espantos afectuosamente recebido por todos os queridos poveiros da cidade e das nossas, também queridas, freguesias; convicto de que só a humildade fará de nós, homens e mulheres de bem. E que a sustentabilidade do mérito, também se medirá no futuro, no qual procurarei honrar a Póvoa, no dizer e no fazer.
Agradeço, do coração, a apresentação feita pelo meu querido amigo de há muitos anos, Dr. Carlos Costa, que comigo, como guitarrista, pisou centenas de palcos, onde a poesia sorria nas cordas e na voz. Muito obrigado, Carlos, também estás no interno deste reconhecimento.
Apresento, ainda, o meu abraço de muita alegria, felicitando o nosso muito querido Dr. Álvaro Moreira, a quem foi atribuída, também, esta distinção honorífica, pela sua carreira cívica em prol da cidade. Bem – haja!
Um grande abraço a todos os presentes, familiares e amigos, com um, muito particular, a minha querida esposa Isolina, grande companheira e outro ao nosso querido filho Raúl, aqui presente, nossa Obra maior de Vida.
Senhor Presidente, queridos amigos e amigas,
Nasci, em Argivai, meu chão de matriz telúrica, e a ele regressei com Isolina e Raúl, ainda bebé.
Desse regresso nasceu o poema “Para Argivai vou”:
Para Argivai vou, eu sou de lá. / Com casca, carvalho, eucalipto / e pinheiro me confundo.
E com mosto e com lama / ungi a minha alma, que é deste mundo!
Regresso ao Tempo, / em que fui marcado / pela subtileza do silêncio
Regresso ao Tempo, 7 em que as chaminés da minha Aldeia / deitavam fumo ao entardecer
Regresso ao Tempo, / e pasmo neste silêncio, agora a sós, / com o filho do homem e da mulher.
Poema este, que inicia o meu 2º livro de poemas “ Na raiz do Tempo”
Enquanto Argivai em mim se mantiver (significa “memória viva”), perceberei, nem que seja por essa espécie de manta de retalhos cerzida pelas continuidades e descontinuades da existência, que o meu corpo retém a criança, até na forma, digamos em estado adiantado de juventude, que me tem permitido dormir no mesmo berço desde sempre. É visível, embora não seja compreendido, o esforço que fiz para não ser deslocalizado para aquelas camas enormes que para mim constituíam palácios de Versalhes e, às vezes, aparências de ginásio.
O meu redor eram pessoas que eu via como arranha-céus. Pareciam Nova Iorque enquanto me sentia um grama, e me vingava sabendo-me uma relva maior que as outras. Só as minhas irmãs leiteiras, as vacas da pequena casa agrícola, me devolviam a equidade. Podia beijá-las sem ir buscar o escadote. Amava-as muito e ouvia-lhes, com deleite, o som fundo do seu violoncelo.
No berço tinha muitas agitações e não demorou muito a acontecer, por uma pequena alteração de consoante, a fusão entre berço e ‘berso’. Rapazinho meio púbere meio úbere, fui tomado por um assombro na montra da livraria do Sr. Marcelo, a Minerva, na rua da Junqueira. Não rastreei nada. Vivi uma epifania. O livro Só de António Nobre eclipsou tudo o que pudesse existir à sua volta. Do autor sabia um poema de cor, de coração.
Fundamentado nas experiências do mercado cinzento das necessidades, arranjei batatas e milho cuja venda me garantisse a compra do livro. Não recordo a quantia, mas foi um custo casto. Levei o livro para casa. Tratei-o com voracidade e ternura, inalei o seu cheiro e tateei-o como o mais belo corpo que alguma vez levara para o berço. O Só tinha deixado de estar sozinho.
Este evento mediúnico foi a solda de uma instância identitária que Nobre tinha inscrito na minha moleirinha antes que esta se fechasse: “ Oh! as lanchas dos poveiros / a saírem a barra entre ondas de gaivotas ". Sentia-me aquilo, vivia essa Lusitânia toda. O poeta António Nobre, tinha-se tornado uma segunda mãe, tinha parido um poveiro. Todo o poema, extenso e intenso, rapidamente se tornou o metrónomo que regulava as minhas batidas cardíacas.
Muitas vezes imaginava-nos, a mim e ao Nobre, no cimo do farol da ponta do cais ou no da Igreja da Lapa, a ver a largada daqueles berços em forma de barcos a motor de braços:
“Senhora Nagonia! / Olha acolá! Que linda vai com seu erro de ortografia”.
E eu também ia, também largava. E, como os pássaros, não olhava para trás, só queria sair da Barra onde se espelhava tanto luto, tanto “Adeus! Adeus!” que as bocas das pescadeiras vocalizavam com temor ao presságio. Via-me como um navegador etéreo, por cima das lanchas, entre mar e céu, sem outro destino que não fosse o dos habitantes da lancha na faina do lanche.
Levei a lancha, como minha permanente vela acesa que nenhuma tempestade conseguiria derrocar. Primeiro para Coimbra, como guitarra interior e exterior da dor de nós, da nós-talgia.
Depois para todos os lugares, de Lisboa ao Rio de Janeiro, de Compostela ao mais remoto povoado, sentindo-me sempre o corifeu das pescadeiras, como uma sonora gaivota que voa. E, com ela, todo um Povo!
É difícil finalizar este agradecimento, só me resta começar de novo, e a este título, nada melhor do que dizer, a entre nós designada “Ladaínha das Lanchas” na companhia das vozes da Capela Marta, e dos restantes músicos, sob a direcção do nosso querido Maestro Tiago Pereira.
Muito obrigado.
Viva a Póvoa de Varzim!
Aurelino Costa, 16 de Junho de 2022.