Voz da Póvoa
 
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Ser Mulher num Mundo de Homens é Sempre uma Luta

Ser Mulher num Mundo de Homens é Sempre uma Luta

Pessoas | 8 Março 2024

 

A Tasca da Carolina foi Regionalizada pelos Sabores Tradicionais

Não é novidade, antes uma constatação. Há sempre uma tasca ao lado da igreja ou capela, se não existe, já existiu. As mulheres iam à missa, à reza, ao terço e os homens ficavam pela tasca, a matar a sede e o bicho ou as agruras da vida. Há também quem lembre que da água, Deus fez vinho, e ali na tasca bebiam todos.

A Tasquinha do Silva, ou melhor, o restaurante da Carolina, também fica ao lado de uma capela, Santo André das Almas, em Aver-o-Mar. Foi apenas um acaso, uma caminhada pelos passadiços e um desvio, com sete anos. Depois, um olhar num estabelecimento e a ideia de fazer nascer ali uma Tasca, concretizou-se.

Em 1967 nascia em Fornelo, Vila do Conde, Carolina Arminda Gomes da Silva: “A memória que guardo de Fornelo são as pessoas. Era uma aldeia muito pobre, onde todos se conheciam e se tratavam como família. Não senti a fome, a pobreza, a diferença, porque todos os vizinhos eram chamados por tios ou por tias, protegiam-se cuidadosamente uns aos outros. Tenho um carinho especial pelas pessoas da minha aldeia que para mim são imortais”.

Da infância guarda o tempo em que os livros deixaram de ter só olhos e passaram à leitura: “a minha mãe era empregada na escola de Fornelo, e o meu pai fazia profissão como pedreiro, mas o gosto dele era trabalhar a pedra. Eu vestia uma batinha e havia disciplina. A nossa professora primária era uma segunda mãe. Eu tive muita sorte porque tinha duas mães na escola. Uma ensinava e a outra cuidava de nós dentro e fora da escola”.

Ganhou a primeira profissão através de uma perda familiar: “O meu pai faleceu, eu tinha 11 anos. A minha mãe ficou doente e precisou distribuir-nos. Éramos dez irmãos, eu fui para a casa de um médico oftalmologista, Azevedo Teixeira, no Porto. Cuidaram de mim e eu cuidei deles, e dos filhos deles”.

E Carolina Silva acrescenta: “A minha mãe é uma mulher heroína, teve 10 filhos e criou-os com muita educação e muita responsabilidade. Ainda hoje cuida de cada um ao seu jeito, nunca se afastou de nós. As pessoas da aldeia gostam todas dela. Eu enquanto crescia dizia que queria ser como a minha mãe, meiguinha, responsável, boa mãe. Tentei ser um pouco a cópia dela, ter valores que aos meus olhos ela tinha e isso dava-me coragem, força para ser lutadora”.

No sentido do trabalho, foi uma mulher que teve pouco tempo para ser menina? “É verdade, mas também me sinto orgulhosa com a estrada da minha vida, com o percurso que tenho feito na hotelaria. Quando pertencemos a uma família numerosa, os pais responsabilizam-nos ainda na idade de brincar. Aprendemos a cozinhar muito cedo para sustentar os nossos irmãos mais novos e mais velhos, na ausência dos nossos pais. A minha mãe para fazer face à vida, além do trabalho que tinha na escola, todos os fins-de-semana, trabalhava num restaurante. Aprendemos a ouvir as conversas da minha mãe sobre culinária e isso despertou-nos. Fomos crescendo com a ideia de que a gastronomia podia ser uma saída profissional. E hoje, somos três irmãs no ramo da hotelaria”.

De Pasteleira à Restauração há uma Viagem pelo Conhecimento

“Comecei na Póvoa de Varzim numa pastelaria na Mariadeira onde aprendi a ser pasteleira, mas a minha juventude tinha outras ambições e horizontes. Ouvi dizer que no Algarve aprendia-se e ganhava-se dinheiro. Fui três anos para aquela região do país para estar mais dentro da hotelaria. Estive numa das melhores casas de pastelaria, fiz catering, tudo o que pude absorver para aprender e perceber o que era o turismo e a hotelaria. Eu tinha 18 anos e não foi fácil porque o Algarve tinha-se aberto quase de forma repentina ao turismo estrangeiro. Para mim foi um desafio, mas consegui vir com arcaboiço para chegar aqui e ver as coisas de outra maneira. Voltei, fui mãe e como era das raras pasteleiras que existiam, trabalhei em várias pastelarias. Eu tive sempre o bichinho da descoberta. Como cada casa na Póvoa tinha uma especialidade, fui fiel com todos os patrões, mas gostava de pular de pastelaria em pastelaria para perceber o que a gastronomia nos dava da nossa essência. Aprendi muito e bem”.

Formar família teve os seus benefícios: “Conheci o meu marido na pastelaria, ele também me acompanhou no Algarve. Quando ficámos mais estáveis, investimos num negócio, Pastelaria Horizonte, abrimos quando o Feira Nova abriu, há cerca de 30 anos. Tivemos sucesso até ao momento em que - trabalhar juntos também desgasta - deixamos de ter uma vida própria. Ele arranjou um emprego e eu fiz o mesmo. Tempos depois investi sozinha, em frente à feira de Vila do Conde, Pastelaria Girassol. Até correu bem, mas às sextas-feiras era uma confusão de gente a pedir ao mesmo tempo, cansei-me e fui para uma pastelaria em frente ao Brazão. A minha vontade voltou a investir perto da Associação da Matriz”.

A vida dá voltas que nos trazem de volta, “eu precisava guardar-me mais um bocadinho e achava que esse sítio era o hospital. Quando a gente está muito exposta as pessoas fazem muitas perguntas e isso confunde-me um bocado. Guardei-me no hospital onde me receberam como filha deles. Aliás as pessoas do hospital são a minha segunda família, não escondo isso de ninguém, tenho uma gratidão enorme com todos eles. Foram pessoas que me abraçaram e depois me incentivaram, reforçando que o meu potencial não era para estar ali fechada dentro de um refeitório. Um dia, fui atropelada por um automóvel e estive ausente, mas senti-me sempre apoiada, receberam e trataram-me como filha, não esqueço nunca. Tenho que frisar isso, são a minha segunda família, conheço quase todos pelo nome, de cá de baixo até lá acima”.

Durante o tempo de recuperação da perna quebrada Carolina Silva passou muito tempo em casa: “Em vez de estar relaxada, pensei o que seria melhor para mim no futuro. Conheci alguém que me deu um apoio muito grande e que hoje é o meu companheiro. Conversámos sobre os meus sonhos e ele deu-me muita força. Aos 50 anos tinha que fazer as coisas ao meu jeito, com muita responsabilidade. Saber que eu era mulher e que não poderia de forma alguma desiludir quem confiou em mim. Vir para uma aldeia e pôr numa loja um nome de Tasca, tinha os seus riscos. Nos dois primeiros anos fiquei muito confusa, chegou a passar-me pela cabeça fechar, mas pensei em quem confiou em mim e reforcei a vontade de fazer o que tanto queria”.

E recorda: “sem magoar ninguém, decidi fazer uma limpeza e formatar a ideia que eu tinha de início, não pensar em dinheiro, mas num projecto a longo prazo. Criei as minhas ementas, o estilo da casa que eu queria, fiz uma observação de negócio, como receber peregrinos, pesquisei muito nas redes sociais, e quando estava tudo a correr bem, veio a pandemia. Fechei-me aqui dentro, entre paredes e solidão, não tinha clientes e pensei em desistir. Mas, tinha ganho tanto amor à minha casa que desistir não era plano. Aguentei. Entretanto, o Covid foi-se indo embora e as portas abrindo. Acreditei que as pessoas em casa pouparam dinheiro e iriam ter sede de frequentar lugares, de regressar, e assim foi. Estive e estou sempre presente na minha casa enquanto estiver aberta, com a carteira de clientes amigos que eu tenho, consegui chegar ao sonho”.

Ser Mulher num Mundo de Homens é Sempre uma Luta

“A responsabilidade que me acresce vem do tempo de menina, habituei-me depressa a não ter medo. As mães incutem-nos essa responsabilidade, exactamente, por sermos mulheres. No tempo em que nasci, tudo nos ficava mal. Sair à noite ficava mal, sair à rua com saias muito curtinhas ficava-nos mal, brincar com os rapazes ficava-nos mal, então nós aprendemos a ser responsáveis. E a responsabilidade que nós temos como mulher, é cuidar da nossa imagem. Não é a imagem da beleza que falo, mas de responsabilidade perante os outros. Sou mãe, quero dar um bom exemplo ao meu filho e tenho uma mãe que é um exemplo. Depois, a mulher tem o mesmo lugar que qualquer outro ser humano, independentemente do sexo. Temos que aproveitar as oportunidades que a vida nos dá e abraçar os homens que estão ao nosso lado, também não somos nada sem eles. Eu tenho um filho homem, ouço-o muitas vezes. Ele dá-me muitos conselhos, o que acha melhor para mim. Nas opiniões não há masculino nem feminino. Podemos aproveitar o facto de sermos mulheres para provarmos que não somos tão frágeis, se assim fosse não conseguíamos ser mães”.

Viajar tem o lado lúdico, mas também de oportunidade para conhecer como nos recebem: “Eu só amo pessoas, não consigo achar que o amor é centrado na mulher e no homem. Eu gosto de tocar, de afecto, de conversar. Fui a Paris porque queria conhecer a cidade do amor, era ainda muito jovem, teria uns 30 anos, era a viagem que sempre sonhei. Depois, fui a Tenerife e a Palma de Maiorca. Levei comigo o bichinho da hotelaria, queria saber como se vive, praticamente, só de turismo. A ideia não é só descansar, mas também perceber como funciona determinado lugar turisticamente. Paris é turístico, as ilhas tinham-se desabrochado naquela altura e toda a gente falava em Palma de Maiorca, em Tenerife, e eu quis conhecer. Como é que naquelas ilhas se ganha tanto dinheiro. A gastronomia não me parece nada de especial, mas tem muito sol para vender. Nós também temos sol e mar, e não precisamos ser cópia de ninguém. Quando abri a Tasca do Silva, passei a vender a minha gastronomia, aquilo que eu aprendi, nada mais. E tento receber como só o norte sabe receber”.

Depois, Carolina deu liberdade ao cliente de decorar a Tasca à sua maneira, “a minha casa não foi feita para mim, não habito aqui, trabalho aqui. Com 50 anos já não temos a percepção de achar engraçado em chamar um decorador e pôr o nosso restaurante com a sua vontade. Nessa idade não somos uma velharia, mas uma caixinha de memórias, e o meu desejo foi que todos que passassem por aqui fizessem de minha casa a sua. A melhor forma que encontraram foi deixar uma recordação, um cachecol do seu clube, uma pintura, um poema, uma data escrita na parede com dedicatória. Depois, ficam curiosos em voltar e ver se ainda está a sua marca, o seu nome. Também me preocupei em pôr tudo o que é nosso além da gastronomia. Não estou num restaurante, mas na minha sala de estar, certas mesas e as cadeiras levam-nos para essa memória, a casa da minha avó, a nossa casa. Os armários todos diferentes cheios de objectos, de memórias, também de quem nos visita. Pretendia que os nossos peregrinos levassem também um bocadinho da nossa cultura, foi isso que fui buscar aos outros sítios e é isso que eles vêm buscar, a nossa identidade, quem somos, o que fomos, o que comemos”.

Nos caminhos de Santiago temos peregrinos de todo o mundo: “Este é um projecto pequenino, mas que me tem dado o alimento para continuar a fazer com que quem nos visita, possa dizer que tem uma óptima recordação de Portugal. E eu dei-lhe apenas o meu afecto, o meu carinho, a nossa comida, o nosso bem-estar e fazê-los sentir em casa. Eles não sabem o nome das coisas, o que é uma patanisca, um bolinho de bacalhau, mas adoram. Não sei falar a língua deles, recebo coreanos, japoneses, ou muçulmanos que não comem carne de porco, nem todos sabem falar inglês. Levo-os à cozinha, levanto os testos e os tachos, mostro-lhes a comida e eles escolhem com o dedo o que querem. A verdade é que não falando a mesma língua nos entendemos, tocamo-nos e despedimo-nos sempre com um até já. Tenho peregrinos repetentes que levaram o meu nome e um bocadinho de mim. São as tais empatias que eles levam dentro de uma mochila e da sua cabeça. Eles trazem pouco para serem felizes, mas se forem bem recebidos, tiverem estes momentos, levam muito”.

Celebrar a Mulher, Mãe, Companheira, mais que o Dia da Mulher

“Tive a curiosidade de saber o porquê de um dia internacional e se tantas mulheres lutaram pelos nossos direitos, temos que as respeitar e continuar a exigir direitos iguais. Somos empreendedoras respeitadas, os passos vão sendo dados no caminho certo. Depois, queremos ser esposas, o que é óptimo e adoro ser, adoro ter companhia, gosto de ser mulher de alguém, e sou mulher de um homem que me respeita e está sempre do meu lado e ao meu lado. Gosto de dizer que sou mulher dele. Por outro lado sou mãe, um privilégio nosso. Tenho um filho muito parecido comigo. Tentei educar o Nuno dentro dos meus valores. As mulheres são diferentes dos homens, mas o carinho, o afecto, a partilha não tem sexo”.

Para Carolina Silva, “ser mulher é estar no nosso lugar, não precisamos mudar nada. Não precisamos de discutir feminismos, os homens já sabem disso, já nos levam com esse livro de instruções. Sabem perfeitamente que temos a nossa base, o nosso perfume, o nosso tempo, o nosso cabeleireiro, eles já sabem disso. As novas gerações, quer seja de mulheres ou de homens, procuram de tal forma a perfeição que são cópias quase perfeitas uns dos outros. Creio também que o Dia da Mulher não foi criado para fazermos dele um qualquer espectáculo, foi para termos orgulho nas pessoas que lutaram e lutam para nós chegarmos onde estamos com os direitos que temos”.

De regresso ao restaurante, a ideia de nos sentirmos em casa é sentar numa mesa que nos leve para lá: “Tem que haver empatia, quem as receba, e quem as chame para aqui. A passagem dos caminhos de Santiago é mais abaixo, junto ao mar. Para vir a este restaurante tem que querer, tem que se lembrar. O que faz as pessoas, quer seja do Caminho de Santiago ou não, é sentirem-se em casa. Tenho o cuidado de receber cada cliente que aqui vem, faço questão de estar ao pé deles. O sucesso não passa por ter materiais muito bons ou gastronomia gourmet, passa por fazermos bem aquilo que sabemos, e sentir as pessoas mimadas e confortadas porque há muita falta de amor. Essa ideia de que o Covid ia mudar as pessoas não passou de uma ilusão. Recebo pessoas que estranham quando as cumprimento. Porque é que me toca se não me conhece? Eu sei que têm outra mentalidade, mas aceitam, o afecto faz-nos bem. Somos pessoas. O sucesso é feito com amor e paz. Que ninguém se iluda. Nascemos para viver e durante o percurso temos que ser conscientes, humildes, saber respeitar o outro, tratá-lo bem”.

A tasca do Silva já é mais conhecida pela tasca da Carolina: “a Tasca do Silva é o meu sobrenome e do meu marido. Achei que sendo uma tasca na aldeia, e muito isolada iria proporcionar algumas ideias, não por mal, mas por uma cultura enraizadamente portuguesa, em que só vinham à tasca homens e para beber. Se eu associasse o meu nome Carolina, pela nossa cultura, era uma mulher - e eu adoro ser mulher, ser mãe – mas ao baptizar o restaurante de Tasca do Silva, achei que isso me iria defender. A Tasca era do Silva, hoje, é de toda a gente que nos visita”.

Por: José Peixoto 

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