Ser mãe, avó, bisavó é fintar o tempo, saber amparar a dor, a felicidade e prometer chegar aos 100 anos só por teimar em ver nascer um filho ao seu neto pianista. Depois de uma primeira queda que estava a ser ultrapassada de canadianas, em Março voltou a cair e o fémur de uma perna, mesmo depois de operada, não a deixou mais andar, “o corpo é todo meu, mas uma parte não funciona e isso é muito chato porque fico com pena do encargo que tem quem me ajuda”. Passou o mês de Abril internada e a Foice do Diabo andou por perto, entre outros órgãos parou-lhe os rins, infectou-a com a septicémia hospitalar, e nas palavras dos médicos, os dias podiam não ser de esperança, mas “safei-me. Morri quinze dias e voltei à vida. Não me lembro de nada, só de pedir água, molhavam-me os lábios, não dizia outras palavras. Tenho um filho na Holanda que tirou um bilhete de avião para ver a mãe antes de deixar a vida. Até o cangalheiro já estava de aviso. O Raúl contratou um piano para a igreja da Misericórdia, porque era um pedido meu no caso de partir, queria fazê-lo ao som do piano. Veio muita gente para me ver uma última vez. Dei-lhe a volta, enganei a morte que continua à espera”.
Durante o mês que passou no hospital, houve uma força extra que a fez ressuscitar, “o Raúl casava em Junho e eu tinha que estar no casamento, não podia falhar. Ele visitava-me todos os dias no hospital e deu-me essa força – tens que vir ao meu casamento. Agora, tenho que viver pelo menos mais três anos para assistir ao nascimento de um filho ou filha do Raúl, está combinado”.
Maria Amélia da Silva Costa Peixoto nasceu a 20 de Outubro de 1927, em Braga, mas vive na Póvoa de Varzim há mais de 60 anos. “Passei a lua-de-mel no Hotel Universal, que ainda há pouco tempo albergava os Serviços Municipalizados. Nessa noite de descoberta foi feita a milha filha Isolina que nasceu nove meses depois. A sala de jantar desse hotel era toda em pedra. Casei a uma segunda-feira de Maio e passei ali alguns dias, quando regressei a Braga levei um cabaz de sardinhas para oferecer a pessoas amigas. O meu marido trabalhava em Vila do Conde, era caixeiro-viajante e sócio de uma loja de comércio de tecidos, Amadeu Mendes. Andava de terra em terra, vendia por todo o país. Como Vila do Conde não tinha Liceu, optámos por vir de Braga, viver para a Póvoa onde os meus filhos podiam estudar. Primeiro, morei na Rua Serpa Pinto, cerca de ano e meio e depois, passei em definitivo para uma casa em frente à escola do Desterro”, recorda.
Uma vida pode ser resumida a um só livro, mas são muitos os capítulos que a compõem. Buscar a infância é como arrumar as outras idades, e conseguiu ir ao fundo da memória: “Quando era pequenina brincava com bonecas de trapos. O meu pai depois deu-me uma boneca de porcelana. Como eu nunca a largava, a minha mãe estava sempre a ralhar comigo e um dia deu uma sapatada na boneca que se partiu em bocados. Tive que voltar aos trapos. Quando o inverno acampava, bebia todas as semanas, óleo de fígado de bacalhau. Diziam que fazia crescer e protegia a pessoa de doenças”. E acrescenta: “Os meus filhos também tomavam uma vez por semana, uma colher de óleo de fígado de bacalhau. Agora, é composto e não custa tanto a tomar, mas naquele tempo era uma amargura de arrepiar e cerrar os olhos”.
Embora, fosse boa aluna, Amélia Peixoto estudou apenas até à 4ª classe: “Naquele tempo os rapazes iam trabalhar e as raparigas iam aprender a ser donas de casa. Só famílias de outra condição formavam os filhos, e muito raramente as filhas. Tínhamos as nossas obrigações religiosas, em casa a minha mãe obrigava-nos a rezar o terço todos os dias, e tínhamos que nos confessar ao padre. Quando comecei a namorar, tinha uma irmã mais nova que nos fazia companhia por obrigação dos meus pais. Era um atraso de vida, tínhamos que namorar com alguém a fiscalizar, mas eu mandava a minha irmã comprar uns tremoços para podermos dar uns beijinhos na sua ausência. Enquanto fui solteira trabalhava de costureira, mas depois de casada passei a fazer todos os papéis da casa, mãe e mulher-a-dias todos os dias. Como sabia costurar, fazia as roupas para os filhos e para mim. Só nunca fiz camisas de homem, não me ajeitava a fazer as golas. Em cada festa que fosse com o meu marido, levava um vestido novo. Andei sempre muito bem vestida, tinha a minha vaidade”.
Agora que passam 50 anos da revolução dos cravos, Amélia Peixoto recorda: “O meu marido era contra o regime, foi sempre socialista, escondia os livros proibidos, entre os quais do Mário Soares. Dizia aos filhos que se alguém viesse a casa, ninguém sabia da existência de tais livros. A minha filha Isolina costuma definir o 25 de Abril como o dia em que o pai tirou os livros do esconderijo e os pôs na estante”.
Isolina Peixoto que assistia à conversa confirmou as palavras da mãe: “Ele escondia os livros e ninguém sabia onde estavam – o 25 de Abril foi o dia em que o meu pai deixou de esconder livros”.
Amélia Peixoto é mãe de dois filhos e uma filha, tem 7 netos e 12 bisnetos, mas afirma que, “todos os meus netos e bisnetos são maravilhosos para mim, mas eu também os trato bem. Eu acompanhei muito os meus netos quando eram pequenos, até os bisnetos, a avó é tudo para eles. O bonito disto tudo é que os meus netos querem a comida da avó. Às vezes, vêm buscar-me para lhes ensinar a fazer bolinhos de bacalhau, papas de sarrabulho e alguns pratos tradicionais. Eu não faço, mas digo como se faz - mais um pouco de água, mais este ou aquele condimento”.
Quando se fala do Raúl, há sempre um brilhozinho nos olhos: “Ele dormiu na minha casa até aos oito anos. Como andava na escola primária do Desterro em frente a minha casa, era mais fácil. Quando andava no ciclo eu ia esperar e buscá-lo para minha casa. Mesmo para levá-lo à escola de música, era eu sempre que o acompanhava. A mãe era professora e quando saía da escola, vinha buscá-lo. Depois, onde ele ia tocar piano eu estava na primeira fila para lhe oferecer um ramo de rosas ou cravos vermelhos, mas também girassóis. No final do concerto, eu levantava-me e oferecia-lhe as flores, tinha tantas palmas eu como ele”.
E Recorda: “no primeiro concerto do Raúl na Casa da Música, com 16 anos, ninguém podia entregar flores aos músicos no final do concerto, mas eu levantei-me e entreguei com toda a gente a bater palmas”.
Para se fazer o caminho do centenário não há segredo nenhum: “Penso que é por ser boa de mais. Nunca me zanguei com ninguém, com filho nenhum. Os meus filhos dão-se todos bem uns com os outros. Podem não estar sempre de acordo, mas nunca os vi a discutir uns com os outros. Sou a favor das minhas noras, dou sempre bons conselhos, meto sempre a minha colherzinha de bom doce em cada uma. Todos temos defeitos. A preocupação envelhece-nos. Digo sempre para quando chegarem a casa, darem um beijo. Tenho 97 anos, mas quero chegar aos 100, já tenho muitos convidados. Três anos não são muito e passam rápido, mas não convém cair mais vez nenhuma. Como pouco, mas como de tudo. Ainda bebo uma pinguinha de vinho banco, não gosto do tinto. Sou muito bem tratada por todos, nesse aspecto sou uma rainha”.
Por: José Peixoto