Voz da Póvoa
 
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Quando Desobedecer Liberta as Consciências

Quando Desobedecer Liberta as Consciências

Pessoas | 25 Abril 2024

 

A medalha de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, não lhe passou nunca pela cabeça nem que um acto de insubordinação seu, pudesse alterar o rumo da história de uma revolução que, no dia 25 de Abril, celebra meio século de libertação das consciências e da palavra liberdade. José Alves da Costa nasceu em 1951, na Freguesia de Balasar, Póvoa de Varzim.

Perdeu a mãe aos 4 anos, um ano depois perdeu o andar e ficou numa cama meses a fio, “os médicos não me davam vida. Tiraram-me o leite, o açúcar, a fruta, carne, tudo, só aconselhavam a beber água de arroz lavado. Uma vizinha aconselhou o meu pai a levar-me ao senhor Sábios que vivia na Póvoa. Dizia-se que falou na barriga da mãe. O Sábios disse ao meu pai que eu precisava de tudo aquilo que os médicos mandaram tirar-me – você dê-lhe, mas com muito cuidado, acrescente um pouco em cada dia a ver se ele se aguenta e daqui a 15 dias volte, se valer a pena – O certo é que ao fazer os 14 dias, pedi para me pôr a pé”.

José Alves fez a escola primária e até ser chamado para o serviço militar trabalhou com o pai na agricultura, “fazíamos umas terras de renda e um campito nosso. Assentei praça no R14 em Viseu em Abril de 1972. Tirei a especialidade de apontador de carros de combate. Na maré, disseram-me logo que dificilmente iria para o ultramar. A partir de Julho fui transferido para Santa Margarida, Cavalaria 4 e por lá estive até terminar a tropa em outubro de 1974”.

E recorda o primeiro cheiro a revolução que aconteceu, “a partir do levantamento das Caldas (uma tentativa de golpe de Estado frustrada, ocorrida em 16 de Março de 1974), começaram a falar em Santa Margarida que um dia iríamos com os carros de combate para Lisboa e de facto, em finais de Março, princípios de Abril, saímos cinco carros em direcção à capital, embora ninguém soubesse com que intenção. Eu fui incorporado num desses carros de combate, 4 foram para Cavalaria 7 e um para Beirolas. Fiquei em Cavalaria 7 até essa bela noite em que ninguém conseguiu dormir”.

Saiu para a rua como tantos outos, cumprindo ordens, sem saber que era um dos fertilizantes que ajudaria a germinar a revolução dos cravos: O Alferes Fernando Sottomayor recebeu ordens do comandante e organizou as saídas. Primeiro a parte de atiradores, depois os carros mais pequenos e de seguida saíram os nossos. Todos os que saíram antes, passaram para o lado de Santarém. Dos nossos passaram dois e ficaram outros dois, um deles era o carro de combate onde eu estava. Pelo caminho entre Belém e o Terreiro do Paço, uma certa altura parámos, e o Alferes aproveitou a vaga para sair da beira do comandante e comunicar para os carros de combate – ninguém dava fogo sem ordem dele. Como primeiro-cabo, por ser o mais graduado no carro, era eu que recebia todas as comunicações. Seguimos viagem até ao Terreiro do Paço onde deparámos com a situação, mas nós militares não sabíamos de nada, só o Alferes, que acompanhava o comandante num Jipe, tinha conhecimento”.

E recorda: “Vimos militares de G3 à nossa frente e junto ao rio Tejo passavam por nós uns carros Volkswagen pretos do exército com os comandantes. Num momento de tensão, alguns militares de G3 armaram um tiroteio que entretanto calou. Entretanto, apercebi-me que o Alferes foi preso. A polícia militar tirou-lhe a pistola, meteu-o no jipe e levou-o. Continuávamos todos sem saber o que se passava, mas transmiti aos meus colegas o que tinha acontecido. O carro de combate tem duas partes, a parte de baixo onde estão os condutores e a parte de cima, que roda, é onde está o apontador e municiador. Há uma entrada que abre e a gente fica da cinta pra cima de fora, posição em que eu estava quando me apercebi que alguém estava a subir o carro. Era o brigadeiro Junqueira dos Reis (segundo comandante da região militar de Lisboa), que se vira para mim e pergunta se eu sabia lidar com o carro. Inventei que sabia mal, mas para eu estar naquele lugar tinha que saber e ordenou que disparasse sobre os carros que estavam à nossa frente (uma coluna liderada pelo capitão Salgueiro Maio). O brigadeiro aponta-me uma pistola e diz – ou dás fogo ou meto-te um tiro na cabeça. Respondia que ia ver o que podia fazer. Meti-me dentro do carro e disse aos meus colegas para fecharem todas as portas. Trancámos o M47 por dentro e já ninguém lá entrava. Como temos um periscópio onde vemos tudo à nossa volta, comecei a manejar o carro e ainda pensei mandar uma jarda para o rio e satisfazer o brigadeiro, mas no cais que me aparecia no monitor, via tanta gente a entrar para os barcos, que recusei disparar fosse para quem fosse. Deixámo-nos estar fechados e quietos mais de uma hora. Às tantas, abrimos as portas, viemos para cima e estava tudo tranquilo. Nem brigadeiro, nem alferes, nem ninguém que mandasse”.

O Livro “Os Rapazes dos Tanques” de Alfredo Cunha e Adelino Gomes

“Quando foi lançado o livro ‘Os Rapazes dos Tanques’ nos 40 anos de Abril, soube que o brigadeiro tinha falecido um ou dois anos antes. Se estivesse vivo até gostava de falar com ele”, admitiu José Alves.

E continuou a abrir a memória do dia que convém sempre lembrar: “entretanto as ordens foram chegando. Primeiro proteger as antenas de Monsanto, depois fomos para o Aeroporto. Um dos carros ficou na cidade por falta de gasolina, o nosso ainda chegou ao quartel. O capitão como sabia da história toda que se passou, disse-me que iria fazer um requerimento ao Movimento das Forças Armadas para me darem um louvor. Pedi-lhe por favor para não meter o meu nome em lado nenhum, que não pedissem nada a ninguém porque eu queria ir embora da tropa tranquilo. A revolução não libertou de imediato as colónias. Depois se as coisas não corressem como correram, eu de certeza que não estava aqui a conversar consigo. Daí ser difícil encontrar-me, não havia referências da minha pessoa. O Alfredo Cunha e o Avelino Gomes revelaram-me que andaram anos à minha procura. Chegaram a estar em Balasar, mas a minha história não era conhecida e havia outros militares de Balasar e aldeias vizinhas que estiveram no 25 de Abril”.

O ex-militar balasarense conta-nos como Alfredo Cunha e Adelino Gomes o conheceram: “Em Maio de 2013, estava sentado na esplanada do Café Central com um colega a tomar um café, no final do almoço. Parou uma carrinha e saiu um indivíduo com um saco ao ombro e uma máquina fotográfica ao pescoço. Chegou junto de nós e perguntou se conhecíamos o José Alves da Costa. Sou eu, respondi. Ele ficou de tal ordem que pegou na máquina e começou a fotografar-me. Depois disse que ficasse descansado que as fotos eram só para comparar com outras. Contou que trabalhou no jornal Público, que foi fotógrafo de Mário Soares e que andava a preparar um livro dos 40 anos do 25 de Abril. Na altura, eu disse que podiam fazer o que quisessem, mas que a minha vida não era para expor. Ele entretanto, ligou para o Avelino Gomes e combinaram uma conversa no dia seguinte comigo. O Adelino Gomes veio de Lisboa para Braga e como o Alfredo Cunha era de Vila Verde, foi buscá-lo e perto do meio-dia lá estavam à porta da minha casa. Fomos almoçar ao Marinheiro. Quando lá chegámos, estava o alferes Sottomayor. Demos um abraço com os 40 anos que não nos víamos. Comemos e fomos relembrando histórias de Abril. A partir daí não parámos mais com as conversas. Em Setembro desse mesmo ano, eles organizaram um encontro entre vários militares que estiveram envolvidos para ver se descobriam quem estava no carro A ou B, mas a distancia e a memória de cada um não ajudou”.

Novas tentativas foram feitas para aproximar o contar do livro e das imagens da realidade ou da verdade de cada interveniente na história do 25 de Abril de 1974: “Fomos à Foz do Arelho, e quando chegámos estava o Alfredo Cunha e o Adelino Gomes à nossa espera. A uma certa distância estava um grupo de homens. E eu disse - não me digam que está ali o Pacheco, o Furriel, pela fala conheci logo. Ele já era forte e estava ainda mais cheiinho, mas o falar dele era o mesmo. Embora, tivessem passado 40 anos, estivemos mais de dois anos juntos e tínhamos confiança. Foi mais um momento de alegria para todos. Depois, quando foi lançado o livro em 2014, fui convidado pelo presidente da Câmara de Lisboa, na altura, António Costa, e pela Porto Editora. Quando cheguei a Santa Apolónia com o Alferes, estava o Alfredo Cunha que nos levou até ao Terreiro do Paço onde estava o Adelino Gomes. Este último perguntou-me se vinha preparado - só para passear – tenho ali uns indivíduos que lhe querem dar uma coça. Eu sabia que ele estava na brincadeira. Aproximámo-nos de um magote de homens, uns 20, quando chegámos à beira, fizeram-me uma roda e deram-me um abraço por lhes ter dado 40 anos de vida. Eram os soldados que estavam à minha frente quando recebi ordens para fazer fogo. Viram eu manejar o carro e pensaram que iríamos mesmo disparar sobre eles. Na realidade, se aqueles homens não estivessem ali também eu não estaria para contar a história”.

Do Anonimato à Medalha de Grande Oficial da Ordem da Liberdade

José Alves reconhece que a importância das coisas, muitos dos nomes de personagens que desconhecia, assim como passagens da revolução por outros cantos de Lisboa, só tomou conhecimento nos últimos dez anos: “Vim da tropa e alojei-me aqui onde nasci, casei empreguei-me na Mabor General, hoje Continental, e tratei da minha vida. No 25 de Abril lembrava-me bem da história, depois os anos vão apagando algumas lembranças, que foram recuperadas nos últimos 10 ou 12 anos com os Rapazes dos Tanques. Mas, muito do que aconteceu sei-o agora porque na altura não sabia. Nem sabia que os que estavam na minha frente tinham tremido e um deles é aqui de Barcelos. Hoje, somos muito amigos”

E acrescenta: “Depois dessas histórias todas é que soube que se eu disparasse, havia uma Fragata da marinha no Tejo virada para nós e um lança-granadas no Cristo Rei preparado para nos atacar se fosse necessário. Os nossos carros de combate são armas com uma capacidade de fogo enorme, mas basta um fósforo em cima da grelha com o motor a trabalhar e começava logo a arder. A gasolina era de 90 octanas, igual à dos aviões. Os novos já não são assim”.

Antes do 25 de Abril alguma vez lhe passou pela cabeça que poderia acontecer o que aconteceu? “A nossa vida, embora escrava, era uma vida feliz. Passei uma mocidade bonita. Não tínhamos telemóvel, a gente quando era moço encontrava-se com os amigos para conversar e divertir, em qualquer dia da semana, quando o trabalho folgava. Era essa a nossa revolução. Em criança as brincadeiras eram perto de casa, mas a vizinhança era cinco estrelas. Aos domingos a rua virava campo de futebol, campo de jogos, de malha, pião, até ser noite”.

O serviço militar era obrigatório e sentido como uma obrigação: “Custou ir para a tropa, mas tinha que ser. O meu irmão mais velho que faleceu há dias, estava em Moçambique e tinha outro que tinha ido para Angola com 17 anos com carta de chamada e acabou por cumprir por lá o serviço militar. Depois, regressou como retornado. Tinha uma vida meia feita, mas ficou sem nada. O mais velho quando estava no ultramar escrevia para casa. Como o meu pai não sabia ler, era eu que lia e respondia às cartas. Quando recebíamos os aerogramas, primeiro lia para mim e depois só lia para o meu pai o que não doía, o que entendesse que deveria dizer. Portanto, eu sabia que era duro estar em zona de combate, mas ele regressou sãozinho e tranquilo da vida. No meu caso quando fui para a tropa, os primeiros meses foram complicados, a gente sabia que as possibilidades de ir para o ultramar eram grandes. Depois de fazer a especialidade disseram-me que, no meu caso, isso não deveria acontecer”.

Balasar depois de Abril de 74: “Mudou em tudo. A rua que roda pela igreja era de pedregulhos e manteve-se até depois de casar. A estrada que ligava Balasar às Fontainhas tinha apenas um bocado em paralelo, o resto era de pedras e terra batida. Houve uma valorização enorme das infraestruturas desportivas e sociais. Não tínhamos sede de Junta, hoje temos uma de luxo, havia só uma escola com duas salas. Lembro-me de ver soldados que regressavam do ultramar e vinham cumprir promessas, a rastejar da Casa da Irmã Alexandrina até à igreja e faziam o caminho de pedregulhos. Se tenho que ir para o ultramar e me acontece isto. A gente ligava uma coisa à outra”.

O que sentiu quando recebeu das mãos do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em 2021, a tão significante condecoração? “Fiquei surpreendido, mas não me deu mais valor do que aquele que tinha. Ainda recentemente, fui convidado pelo Presidente da República para assistir às comemorações dos 50 anos do 25 de Abril na tribuna, em princípio irei”.

O mundo pula e avança, mas José Alves deixa um recado aos jovens e outro aos saudosistas: “No nosso tempo não podíamos pedir nada, tínhamos que esgravatar para ter alguma coisa, hoje pede-se tudo. Os pais às vezes escravizam-se para dar tudo aos filhos, o que faz falta e o que não faz. A nossa juventude era muito viva, convivíamos todos uns com os outros e hoje a juventude vive para o telemóvel, não convive, não querem mais nada, e o futuro do nosso país está nas mãos dos jovens. Eu comi meia sardinha e quando me tocava a parte do rabo erguia as mãos para Deus. Hoje, estamos no céu e ainda não achamos que estamos bem. Quando me perguntam as diferenças do antes e depois de Abril – antes me quero com o mal de agora que o bem do antes do 25 de Abril”.

Por: José Peixoto

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