Voz da Póvoa
 
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Quando a Língua se Arma de Palavras

Quando a Língua se Arma de Palavras

Pessoas | 24 Setembro 2023

 

O poeta não é um fingidor, é pessoa como o outro, mas nem poeticamente finge a dor que deveras sente, seja nos livros, seja em palco por onde tem viajado com os Sereias. Ainda recentemente, estiveram na Holanda onde se apresentaram em Groningen, Roterdão e Amsterdão.

Há quem rejeite os primeiros escritos, naturalmente verdes como os anos em que foram escritos, mas António Pedro Ribeiro, que rima com Vilar do Pinheiro onde vive, sente que o caminho feito não se descaminha e, por isso, assume ser autor de 18 livros. Eu acrescentaria que a maior idade na literatura chegou logo nas primeiras obras. O mais recente livro “Mulheres, visões e revoltas” é a sequência dessa maturidade? “Sinceramente, penso que este é um dos meus melhores livros. Está mais depurado e é dos mais completos. Fala de temáticas que me têm acompanhado ao longo da vida, as mulheres, as visões, as revoltas. Sobretudo das mulheres e das revoltas, tenho falado sempre, mas o tema das visões, das iluminações e das alucinações é mais abordado neste livro. As coisas que aparecem e não sabes bem porquê, de que lugar da mente vêm, que te fazem pensar que és Deus, Jesus ou Satanás, que tens determinados poderes, que és divino ou maldito”.

Acredita que o cérebro, assim como o corpo, pode ser ocupado por outra entidade espiritual ou apenas se revê nela por alguns momentos? “Eu acho que o nosso cérebro tem capacidades prodigiosas, que a nossa idoneidade espiritual é extraordinária. Não diria que todos os homens ou mulheres atingem, mas nomeadamente, no meio artístico, atingem alturas divinas mesmo. Eu acho que não existe Deus. O único Deus Possível é o homem, tudo se projecta nele como criador. Acho que Deus tal como o descrevem é uma invenção do homem”.

O café continua a ser o lugar onde escrever tem mais corpo? “Continuo a usar as suas mesas, mas ultimamente escrevo mais em casa, no jardim e no quintal. Não se trata do mesmo tipo de poemas ou textos em prosa. O café sempre foi um local privilegiado para mim pelas conversas que ouço. É o inesperado que nos incentiva para a escrita. Claro que há o café e a bebida, escrever sobre o seu efeito. O Café como lugar faz-me sentir confortável”.

Recordo o título do livro ‘À Mesa de um Homem Só’ como se os ruídos fossem absorvidos para a escrita do poeta de Café: “Eu preciso dessa solidão para escrever, mas os outros podem continuar a conversar. Preciso desse momento, primeiro para a leitura e depois para a escrita. Nunca dispenso os livros da minha companhia, são eles que me inquietam e inspiram. Claro que a solidão às vezes custa, é dolorosa, mas enquanto crio, não sou sozinho, no entanto escrevo poemas melancólicos, alguma tristeza, mesmo depressivos, e não são piores que os outros. Outras vezes, eufóricos”.

Um revolucionário que até nasceu em Maio de 68, que vê o mundo como deveria ser e não aquilo que é. A sua escrita questiona e promove um mundo novo. É a não desistência por uma humanidade mais humanizante? “Nunca vou desistir, muito menos mudar. Aos 55 anos as ideias estão bem definidas, teria que o ter feito antes. Muitos mudaram, mas eu, convictamente, não vou mudar”.

O palco é o espaço onde as ideias fluem e podem chegar a mais gente? “Não é só a revolução que se expõe no palco, mas o lado do céu e do inferno. Esse lado dionisíaco, vou buscar ao Jim Morrison, ao Arthur Rimbaud ou William Blake. Temos uma letra que se chama Satã que inicia muitas vezes os concertos dos Sereias. Trata-se de uma música calma onde a palavra se evidencia. Isso pode ser revolucionário em certa medida, mas não é só aquele lado do combate, do militante, do Punk rock que assumimos também. Os concertos são uma mistura de iluminações”.

Depois do CD “O País a Arder”, em 2022, a banda produziu em vinil o disco “Sereias”, actualmente na pele de António Pedro Ribeiro, João Pires, Tommy, Nils, Raimundo, Arianna, Kauê e do Chico. Como é encontrada a selecção dos poemas? “São todos meus, embora nos concertos eu cite coisas dos Doors ou Led Zeppelin entre outros, mas também umas frases do Rimbaud, William Blake ou do Walt Whitman. As letras são escolhidas por mim, mas as que ficam no disco é uma escolha colectiva, como não podia deixar de ser”.

Sendo a sua escrita direccionada à cegueira das pessoas, ao poder instituído, como sobrevive o poeta às críticas? “Começando pelas redes sociais, já fui muitas vezes insultado e atacado de várias formas. Não é que isso me incomode muito. Depois, é preciso distinguir os insultos da discussão política que no caso é saudável. Também já tive, anos atrás, problemas com a polícia ou com os tribunais. Esses casos são sobejamente conhecidos. Como artista ou revolucionário, quando atingimos uma certa notoriedade, num concerto é difícil tu seres atacado, especialmente se for no Porto onde já tens muitos fãs, mas também estás exposto, sujeito a que falem de ti nas tuas costas, mal ou bem. Tens que ter muita capacidade de resistência. Às vezes, deixaste ir a baixo e tens que aguentar, não podes entrar em depressões, mas outras vezes, entras”.

Quando saímos do eixo é normal que provoquemos o outro, mas só a incapacidade deste fazer uma livre leitura do que ouviu, o leva a insultar-te, maltratar-te, dizer que estás a mais ou a menos no mesmo lugar. Temos muita dificuldade em aceitar o pensamento ou a ideia dos outros. Ou seja, somos livres, mas não permitimos que essa liberdade seja extensiva ao outro. Agora, temos a máquina a insultar a história e a autoproclamar-se inteligente: “De facto, isso é verdade. Temos a inteligência artificial, as pessoas a serem substituídas por máquinas ou a transformarem-se em máquinas. As pessoas, cada vez, demonstram menos sentimentos e quem o faz é posto de lado. Há uma lavagem ao cérebro permanente elaborada pelos grandes media, da internet, das redes sociais, mas as pessoas também têm culpa porque deixam-se levar, adormecer, não reagem, preferem consumir, dizer ave-maria ao patrão, porque o seu maior inimigo é o artista”.

Fala-se muito das alterações climáticas, mas ao mesmo tempo que fazemos uma tentativa para separar os resíduos e reciclar, há aviões no ar a inundá-lo de poluição, ou a serem despejados no oceano, milhões de litros de águas residuais radioactivas, consta que tratadas e autorizadas, e nós deste lado a tentar evitar que a saca plástica chegue ao mar. Como te revês nestas simulações, vivemos em lugares diferentes, mas no mesmo planeta. O que é que falta perceber? “Acho que a questão das alterações climáticas teve uma maior repercussão quando a activista Greta Thunberg começou a ser falada. Teve um maior impacto em termos de protesto, mas depois foi abafada pela pandemia e outras intenções. É das questões mais graves, ao lado da guerra, e não se está a fazer praticamente nada. O problema é uma questão de vida ou de morte. Dentro de 10 ou 20 anos, se não se fizer nada, se continuarmos a pagar mais 10 cêntimos pelas sacas de plástico, isto desaparece e será o fim da humanidade, ou se quiseres ser optimista, ficarão apenas alguns a tentar perceber o que lhes aconteceu. Não é risonho o futuro, a não ser que as pessoas se sintam sem saída e façam uma revolução juntamente com a pobreza que em cada dia aumenta. Estamos nesse ponto, ou revolução ou morte. Não há alternativa, tem mesmo que haver uma revolução ou então morreremos. Não é tempo de pregar o catecismo”.

Por: José Peixoto

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