Voz da Póvoa
 
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Não sei como dizer!

Não sei como dizer!

Pessoas | 10 Dezembro 2023

 

Deixo aqui um texto que publicaste no livro “Isabel Lhano” de uma vida. Ainda não percebi nada do que aconteceu. É domingo, chove, mas o dia nem sequer era triste…  

O Vulnerável e Belo Trajar do Desenho   

Cortado o cordão umbilical, nenhuma outra amarra para a vida. Arrancaram-lhe a vontade de continuar professora. Pela vontade de um país onde sonhar fosse possível, distribuiu, antes da revolução dos cravos, propaganda política à porta do trabalho e do ensino. Conheceu os calabouços do interrogatório. Arriscou. Sim, porque arriscar não dá reformas em asilos argelinos.

Pelo afecto interrogou, interpretou, protestou, enalteceu, defendeu convicções. O seu quase permanente desassossego, depois do grito até à rouquidão, que lhe ficou na voz, apresentou-se sempre em desenho ou traduziu-se em telas. Os direitos das mulheres, dos oprimidos, das minorias, dos refugiados, de todos os que emudeceram na censura, na ofensa, no silêncio, nas prisões.

Genuína e sem máscaras, sempre a inquirir a hipocrisia do mundo. É da sua natureza intensificar a arte pela viagem dos afectos, defendendo valores inquestionáveis, mas sempre colocados em questão. 

Mulher mãe, indivíduo, viajou, conheceu terras, Paris, a pátria da liberdade artística e cultural. Regressou para dar colo ao seu sangue, ensinar depois, como ser capaz de voar nas cores, no conhecimento, na frustração. É por isso que Inquietação é a palavra corpo, memória, gesto, traço, desenho, pincelada, cor, acrílico em tela.

Lhano, herança de esmalte no sangue. É natural de Vila do Conde. Licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes do Porto. Isabel não escreve poesia, Lhano pinta e dá às telas palavras de poetas como Valter Hugo Mãe, João Rios, Isabel de Sá, Jorge de Sousa Braga, Herberto Hélder ou Ramos Rosa, essa enormidade plural, capaz de entender todos os silêncios, uma inexistência quando o coração bate.

Ser gente e assumir pela cabeça o fogo, elevou o humano e desarmou com delicadeza e deslumbre todos os olhares desconfiados ou não. No território dos afectos comunicou a urgência e ofereceu ao mundo uma outra paz.
  
Porque o contrário de guerra não é paz, é criação. Isabel sempre soube organizar o caos. Na arte de ser pessoa, uma exposição é muito mais que uma viagem de Lhano, é música, dança, teatro, poesia, que liberta dos amigos, que exige de quem cria, expor-se também, às vezes pela primeira vez.

Talvez na procura encontre um atalho, uma direcção, uma dicotomia, uma transversalidade, onde Isabel Lhano se exponha num cartaz, num desenho, numa tela, num mural, numa ilustração, na capa de um livro. Não encontrará nunca Isabel Lhano numa ofensa à liberdade do ser, à dignidade do outro.

Dentro desse mundo criativo, escolhemos entrar no paraíso do esquecimento, onde as gavetas guardam convicções em desenho, um tempo mais gestual da mulher de fogo que ao abraçar mais de quatro décadas de sedução, hoje o gesto é já pintor e quando desenha é um outro acto artístico. A arte de Isabel Lhano não vive de hesitações. 

José Peixoto
20 de Março 2019 

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