Voz da Póvoa
 
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Haverá Sempre um Império Afectivo em Cada Olhar

Haverá Sempre um Império Afectivo em Cada Olhar

Pessoas | 30 Dezembro 2023

 

Isabel Lhano cresceu entre o esmalte do sonho e a realidade do sentir as fragilidades do mundo em cada sentido ou conquista. Era da memória que reconstruía a sua, a nossa história. Há também uma contínua actualidade numa obra intemporal, que nos ofereceu sem contrapartidas. “A minha arte é para inquietar, mas não da forma como tantos outros artistas o fazem, de forma extremamente dorida. No meu caso, inquieta dentro de uma determinada beleza. Ou seja, há sempre um elemento disposto a distorcer a intenção, um grito entre pássaros”.

Nasceu em 1953, em Vila do Conde. Licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes do Porto, Isabel Lhano leccionou em vários estabelecimentos de ensino onde foi angariando admirações e corações. Depois de festejar 70 anos em Agosto e reunir uma enormidade de desenhos e pinturas que semeou no mês de Outubro, nas paredes do Centro de Memória, Auditório Municipal, Casa Antero de Quental, Teatro Municipal de Vila do Conde e Cine-Teatro Garrett na Póvoa de Varzim, onde reuniu amigos, conhecidos, coleccionadores e admiradores da sua obra, apresentando um livro patrocinado pelo Município de Vila do Conde, onde uma resumida viagem pela sua vida e arte se misturavam. Foi ao Pátio, onde entre amigos, saboreou a sua habitual cerveja e brindou à alegria contagiante que a acompanhava nos últimos tempos. Na noite do dia seguinte, entrou pela madrugada dentro e a 10 de Dezembro, interrompeu a vida para dar lugar à humanidade que sempre sonhou.

Esta conversa aconteceu no Centro de Memória entre as suas telas, a 7 de Novembro. Inconformada como sempre foi, Isabel Lhano começou por folhear na memória histórias da sua infância: “Nasci na dureza, no fascismo, que me marcou imenso e criou em mim a vontade de ajudar a abrir horizontes. Havia muita gente calada. Rebobinando até à escola primária, eu tinha uma professora muito insensível. Antigamente, havia três filas de carteiras, a dos ricos, a dos remediados e a dos pobres. Eu era dos remediados, mas dava-me bem com toda a gente. Fui sempre contra a injustiça. Um dia, a carcereira da professora chamou uma menina pobrezinha, descalça e com as mãos cheias de frieiras. Tinha dado alguns erros ortográficos, e ela disse à menina para estender a mãozinha ao contrário, pelas costas e deu-lhe com a palmatória. Aquilo explodiu em mim como um dramático tambor de injustiças e penso que a mulher que sou hoje, nasceu ali. Eu não sou capaz de matar bicho nenhum. No meu atelier tinha uma aranha de estimação, interessava-me pela construção da sua teia, uma ajuda preciosa na captura das moscas. Um certo dia, entrou um ratinho numa sala de aulas e assisti a alguns alunos aos gritos. Tinham medo de um animal tão pequenino. Imaginem-se ratos a olhar para as pessoas, quem é que tem que ter medo de quem?”.

Recuar ao tempo da ditadura onde chegou a ser presa pela Pide, é recordar as várias formas de luta pela liberdade que tardava: “Naquela altura, pintavam-se frases nas paredes, havia pouca disponibilidade e dinheiro para fazer cartazes. Até que apagassem da parede o grito, a revolta, muita gente lia. Um dia, disseram-me para não pintar mais frases porque a minha letra, o meu traço, revelava uma identidade, era uma questão de tempo e podia ser detida. Passei para uma coisa mais clandestina. Tínhamos uma casa onde fazíamos autocolantes, chamávamos vinhetas, para colar de forma instantânea numa porta ou parede e disfarçadamente fugir. Um dia, estava na casa a fazer vinhetas e alguém bateu à porta. Pensei logo em fugir pela janela que estava sempre entreaberta, mas o reconhecimento da voz quebrou o impulso”.

A Póvoa foi a primeira cidade a acolher os ensinamentos de Isabel Lhano: “Depois do 25 de Abril, no ano lectivo de 1975/76 concorri para dar aulas. Houve um incêndio no Ministério da Educação e os nossos processos arderam todos. O ano começou e nós à espera, acabámos por reunir um grupo e levámos a nossa razão ao Ministério que nos colocou a dar aulas no final do ano lectivo, no meu caso em Abril e Maio, no Liceu Eça de Queiroz. Passei o verão inteiro a fazer horários, tudo à mão. Uma trabalheira”. E acrescenta: “Nos anos 90, fui dar aulas para a Flávio Gonçalves, fazia parte do Conselho Pedagógico e o nome da escola foi também proposto por mim. O Flávio foi meu professor de história de arte nas Belas Artes. Fui eu que sugeri o seu nome para a Escola. Também dei aulas de pintura, algum tempo, na Filantrópica”.

“As mãos são muitas vezes as minhas”

“Tiro fotografias ao gesto e depois colo na reprodução do desejado. Há uma fase na minha pintura em que fotografei mesmo a malta que se dispôs a representar uma espécie de cenário do meu imaginário, os gestos, as expressões faciais, os olhares, o afecto entre pares, as minhas musas. Foi a minha fase mais cinematográfica. Antigamente, não tinha modelos e quando realizava um quadro, retirado do meu imaginário saíam os meus rostos, mas eu não quero que seja eu. Reconheço que a cara que vejo todos os dias no espelho é a minha, mas isso acontece sem o artista querer. Por isso, é que passei uma fase em que os corpos que pintava não tinham cabeça”, recorda.

Executar uma obra ainda carrega consigo o sentido da libertação? “Tenho muitas vezes a sensação estranha de carregar algo que quer sair, como se fosse um filho. No entanto, por vezes, não passa de um grito, de uma interrogação, de uma perturbação, não só minha, como do mundo, um inquietante drama. Tenho muitas mulheres dentro de mim, mas a mulher que eu sou, vai passando por fases que aparecem representadas nas telas. Os artistas são pessoas inquietas. Alguns são mesmo barómetros porque a sua sensibilidade antecipa o acontecer”.

A artista no seu percurso pela arte da inquietação sempre soube escolher o caminho ou o momento gritou mais alto? “No início, pintava convulsivamente, tinha necessidade de fazer a catarse da vida que vivia, descarregar. Pintava quase de uma forma obsessiva. Agora, sou mais realizadora e consigo explicar-me melhor. Nos primeiros tempos não tinha uma explicação para aquilo que produzia. Era comandada talvez pelo instante. Levantava-me a meio da noite para pintar. Estava a dar uma aula e de repente surgia um desenho na minha cabeça. Não descansava enquanto não o reproduzia. O certo é que não me consigo olhar sem realizar, agora, de forma mais calma. Imagino e vou construindo cada momento, cada sequência da história. Saio muitas vezes à rua e o meu olhar não vê ninguém, é como se estivesse a pintar no ar, no vento. Já fui atropelada duas vezes, uma delas na passadeira. Se é que no azar habita alguma sorte, fiquei com o braço e a mão que não sabe pintar ao peito”.

Se quisermos perceber melhor de onde surgem alguns rostos creio que no cinema encontraremos a resposta: “Às vezes, estou a assistir a um filme e vejo uma certa expressão – é esta que quero para o meu quadro. Só quero a expressão do olhar, encontro a pessoa e dou-lhe essa expressão. A minha arte é muito cinematográfica. Sempre adorei e vi muito cinema. Os pássaros do Hitchcock estão representados numa tela, mas há outros. Cada quadro conta uma história, no fundo sou uma realizadora da minha obra. Há quadros que têm uma sequência, a mulher em fuga entre os escombros de uma guerra. Faço as minhas inquietações como mulher e mãe através dos meus quadros. Quero representar uma ideia e por vezes encontro-a num filme. A minha mãe dizia que eu desde pequenina que era muito teatreira”.

O cavalete foi sempre o suporte da sua criação artística? “Só quando pintava em papel de cenário, naturalmente estendido no chão ou sobre uma mesa. Cheguei a desenhar um cenário com uns 6 metros para um espectáculo no Auditório de Vila do Conde, do Colectivo Silêncio da Gaveta sobre a temática dos afectos. Gosto de cruzar as artes e por isso sempre convidei amigos para as minhas exposições, dançarinos, bandas de música, artes circenses, poesia, fontes onde sempre fui beber. Sempre achei que a minha arte cruza as artes todas. Sou influenciada pelos poetas, pelo cinema, pelo teatro, pela dança, pela música. A minha obra vive dessa coreografia. A minha imagética é muito figurativa, mas tenho que sentir as pessoas. Algumas, parece que as conheço desde sempre. Eu pinto as pessoas sempre bonitas porque gosto delas”.

Exposição ou o Acto de se Encontrar no Outro?

“Consegui expor quadros de colecções particulares, alguns com uma série de anos. Nas cinco exposições que inaugurei nas duas cidades, penso que é possível ter uma ideia do meu percurso, da minha linguagem como artista. Naturalmente, fervilham ideias novas na minha cabeça, mas o momento é de algum repouso e reflexão. Neste encontro de memórias há quatro vitrinas onde podem ser observados livrinhos com desenhos dos meus quadros. O amigo e fotógrafo, Pedro Martins, acabou por mostrar com a sua lente, desenhos dos quadros com pessoas envoltas em fios, a composição, como é que eu quero que fique na tela. Mas, depois parto para os quadros logo a desenhar a pincel. É a prática do invisível. O meu filho ajudou muito a compor o livro”.

A série Corpo Plural representa os bailados que dançam na nossa cabeça? “Surgiu de uma ideia meia doida que passava por pessoas a voar, um projecto que nasceu nos anos 80 e que nunca largou a minha cabeça. Um dia, fui ver um espectáculo no teatro Municipal de Vila do Conde, uma cena de dança interpretada por duas irmãs que adorei. Depois, reparei que o teatro tinha um piso em vidro que por baixo se via quem por cima andava. Surgiu aí a possibilidade de fotografar as bailarinas. Eu fui coreografando as suas posições e o Valter fotografando. Embora as imagens surjam aparentemente desfocadas, resultou em pleno nas telas”. 

Porquê o quadrado na escolha das telas? “Tenho raras telas rectangulares, porque consigo no quadrado arrumar melhor a minha cena gráfica. É como se tivesse encontrado o espaço certo para as minhas intenções ou deambulações. Na série do Corpo Plural achei que fazia sentido o rectângulo, mas é no quadrado onde me sinto. Creio que desde 1995 a minha obra não quis outro espaço, só uma ou outra excepção me obrigou sem convencer. Também pintei muitos quadros a óleo, mas quando apareceu o acrílico nunca mais o larguei. O óleo tem tempos de secagem e eu tinha pouca paciência. Parar e pintar no dia seguinte era doloroso. Com o acrílico, que não tem cheiro, chego a pintar um quadro num dia onde junto a manhã, tarde e noite com pequenas pausas para os casos e acasos”.

Devemos ser do lugar onde nos sentimos bem, mas porquê Paredes de Coura? “Teve os dois lados da moeda. É sempre dureza teres que mudar de terra, deixar para trás o lugar onde viveste tantos anos, cortar com quase tudo, menos com os amigos. Não foi fácil. A coisa boa é que tinha em Paredes de Coura alguns amigos, incluindo a Susana Vassalo que foi minha aluna e o cineasta Paulo Pinto. Conhecia também o Victor Pereira do tempo em que dirigia o Festival de Paredes de Coura. Das coisas bonitas que guardo de Coura foi efectivamente ter um Presidente de Câmara que valoriza a arte, que me convidou a pintar uma tela gigante para o Salão Nobre. É a minha homenagem àquela terra. Estudei as suas gentes, o Aquilino Ribeiro e outros, mas tinha que levar a mulher do Carmona, uma revolucionária na época, tempos de ditadura. Centrei a mulher como alma daquelas montanhas, a mulher natureza. O Victor disse uma cena muito bonita – Isabel, a tua obra é o melhor legado que eu deixo no meu mandato a Paredes de Coura. Fiquei muito sensibilizada. Fez-me bem ter vivido naquela terra do Alto Minho. Pintei muito e durante a Pandemia foi a minha renúncia ao isolamento. Mandaram-me de Loures fotos de negros com máscaras, eu pintei uma série de retratos e enviei. Foi através da minha amiga Amélia Teodoro que essa encomenda surgiu. Acabei por dar felicidade àquela gente”.

É o retrato, às vezes o surrealismo a comandar a intenção, mas acima de tudo uma mensagem sempre explícita: “A minha obra é muito diversificada, sempre Isabel, nem sempre Lhano, tem muitas fases, tal como a minha vida se preencheu de momentos bons e maus, com histórias que saem do comum. Dei aulas em terras que cresceram em regiões diferentes, de norte a sul, fui casada e entre a felicidade e o drama, as respostas surgiram na tela, que acabam sempre por encontrar outras almas gémeas na alegria e no sofrer. A arte salvou-me, fez-me sair de uma certa negritude das relações afectivas que vivi. O meu filho tirou um curso de psicologia para se entender e entender-me entre mundos. A mulher marcada e amargurada por essa dureza, sobreviveu e voltou a sorrir”.

O poeta Armando Ramalho escreveu num dia luminoso: “Dói Ver Ser esta palavra, um mundo sem amanhã e rir das Andorinhas”.

Por: José Peixoto

Fotos: Rui Sousa

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