Voz da Póvoa
 
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Desnascer Para Contar uma Vida

Desnascer Para Contar uma Vida

Pessoas | 4 Junho 2022

 

Quando somos nós a história, para contá-la precisamos inverter o caminho, desnascer até onde a memória é capaz de lembrar. Mesmo quando não é exacta, ela acende no longínquo lugar, as cores, as casas, as pessoas, todo o passado ressuscita para viver de novo, uma repetição da tragédia ou da sentida alegria. Viver é o único pecado original e Deus perdoa os que sabem interpretá-la, amá-la. 

  Alberto Eiras Gomes dos Santos nasceu em 1931, no lugar da Pedrinha, freguesia da Estela, onde reside. “Éramos 8 irmãos e fiquei órfão de pai muito novo, num acidente frente ao campo do Varzim. Tínhamos carregado um carro de sargaço para adubar as terras, precisamente em frente, onde é hoje a esplanada do Carvalhido. Antigamente, a marginal não tinha casas como tem agora, havia as traseiras com portões virados para a praia. A 13 de Março de 1940, já noite escura, ao chegar à zona do chamado velódromo (Varzim Lazer), a estrada era de terra batida, o carro de sargaço era muito alto e de repente virou por cima de mim e do meu pai. Eu fiquei com as pernas presas no sargaço e safei-me, mas o meu pai não teve a mesma sorte. Quem ia a chamar o gado era uma mocinha de Cristelo que começou aos gritos, mas a casa mais próxima era junto à escola Camões, onde desemboca a Avenida Santos Graça, na praia. Eu fiz o mesmo, mas ninguém nos ouvia. Até que apareceu alguém a cortar as cordas para libertar o sargaço, mas já era tarde, e o meu pai já não respirava”, recorda.

Quando a vida se alonga não nos afastamos da dor, mas falar das feridas não é avivá-las, é ter a certeza da cura. Daí, Alberto Eiras nos colocar perante a sua realidade com o à vontade de quem conta uma estória: “Era o terceiro de oito irmãos, no dia em que o meu pai morreu, a minha irmã mais nova tinha cinco meses e o mais velho teria 11 anos. Entretanto fiz a 4ª classe e escrevi ao meu tio que era advogado, professor do colégio Militar e oficial do exército em Lisboa, para me arranjar um emprego na Capital. Um miúdo de 11 anos, da província, não era fácil, mas com as boas relações que ele tinha, arranjou-me um emprego no Hospital da Venerável Ordem Terceira de São Francisco, a trabalhar 9 horas por dia, com cama, mesa e roupa lavada, a ganhar 80 escudos (40 cêntimos) por mês”.
 
E continua: “Fui trabalhar como paquete nos quartos dos doentes. Quando precisavam de alguma coisa tocavam à campainha e eu ia ver o que precisavam, acender um cigarro, comprar tabaco, aproximar a arrastadeira, dar um comprimido ou chamar a enfermeira. Quando morria algum doente, seguia para a casa mortuária e enquanto não viesse um familiar, muitas vezes de longe, era destacado um funcionário da instituição para ficar sozinho junto do cadáver coberto por um lençol. Era uma tarefa que me custava muito fazer - estas coisas marcam-nos para sempre. Vivíamos a segunda Guerra Mundial e lembro-me de passar meses sem comer batatas, não havia. O que não faltava em Lisboa era o arroz e peixe. Carne e batatas nem vê-las. Comíamos todos os dias arroz e peixe, mas não me cansei do arroz, ainda hoje gosto muito”.

Alberto Eiras sentia-se bem em Lisboa, mas foi forçado a regressar à Estela: “Estava todo entusiasmado em Lisboa, mas o meu tio, um homem cheio de actividade, teve um problema de saúde, foi internado e dez dias depois faleceu, tinha 51 anos. A sua irmã professora, por recomendação de uma senhora idosa brasileira, Maria Adelaide, escreveu à minha mãe, perguntando se deveria levar-me de volta à Estela – para não me perder em Lisboa. A minha mãe respondeu para fazer o que achava melhor. Obedeceu à Maria Adelaide, a senhora rica, e lá tive eu que regressar à Estela”. 

Quando Acreditamos no Sonho Somos mais Capazes  

“Larguei emprego e projectos, mas queria continuar a estudar. Na altura, fui ao velho Liceu sediado na antiga fábrica do gás, um belo edifício que deu lugar ao Bairro dos Pescadores. Na secretaria trabalhava um filho do Vasques Calafate, o João Calafate. Explicou-me que sem exame de admissão não podia entrar no Liceu, mas como já tinha 14 anos podia entrar na Escola Comercial. Disse-me para fazer lá o primeiro ano e as disciplinas que não eram comuns no Colégio D. Nuno, e no final do ano lectivo fazia a transição. Fiz a transição do ensino técnico para o liceal com 17 valores. Como precisava ganhar dinheiro e os rendimentos da agricultura eram muito reduzidos, arranjei um emprego no Patronato-Oficina de São José, integrado na Casa Poveira de Acção Social, que tinha também Cozinha Económica e Lactário. Mantive as actividades em simultâneo de estudante-trabalhador. Só de lá saí, como Cartorário Gerente, para ir para a tropa, aos 21 anos, onde aproveitei para fazer exames de admissão a vários Bancos. Fui chamado para o Banco Inglês e no dia seguinte recebi uma carta do Batalhão de Caçadores 5 - Campolide, a mobilizar-me para a Índia”.

Cumpridos quase três anos de tropa no continente, Alberto Eiras rumou até Goa onde esteve mais dois anos: “Em Goa tirei a carta de mota, ligeiro e pesado. Por causa da União Indiana conduzia-se pela esquerda e tive que me adaptar. No regresso, podia ter ingressado no Banco Inglês, mas quando desembarquei, esperava-me o Monsenhor Lopes da Cruz, fundador da Rádio Renascença e um dos fundadores da RTP. Era pároco da igreja dos Mártires e um grande jornalista, convidou-me para trabalhar na Rádio Triunfo - uma empresa que por intermédio do monsenhor Lopes da Cruz, era detida em 1/3 pela Renascença. Era um emprego extraordinário. Contactar e fazer contratos discográficos com os artistas, assistir às gravações, fazer as notícias para a rádio, era um trabalho muito intenso. Inicialmente não tínhamos estúdio no Porto e as gravações eram feitas, normalmente de noite, no Teatro São João ou no Sá da Bandeira. Os ranchos folclóricos eram gravados ao ar livre, geralmente na terra do Rancho. O Rancho Poveiro foi gravado, ‘O Mar Enrola na Areia’ e outras canções, nos jardins da casa David Alves, na Avenida Mousinho, junto à residência paroquial de S. José. Tratei de tudo com o Armando Marques. Recordo que ‘O Mar Enrola na Areia’ foi dos discos de música popular mais vendidos em Portugal. Gravámos centenas de ranchos”.

O tempo pode transformar os objectos, ignorá-los mas há sempre quem guarde ou quem os recorde: “Quando entrei na Rádio Triunfo, os discos de 78 rotações, das Grafonolas, estavam a deixar de se fabricar. Aí começou a aparecer a microgravação, os discos de 45 rotações com uma música de cada lado. Tinham 17 centímetros. Apareceu também o disco EP com dois trechos de cada lado. Mais tarde, os discos de 33 rotações e 1/3. Ainda apareceu o disco de 16 rotações por minuto, mas não vingou porque era lento e qualidade de som não era boa. Gravávamos também cassetes e cartuchos da marca ‘Alvorada, Melodia e Áquila’. Entretanto começámos a fazer postais-discos, uma coisa muito curiosa, um vinil em formato postal. Isto não vingou porque a dilatação do acetato não é a mesma do papel. A gente gravava e depois colava o plástico ao papel. Fizemos mais de 100 postais diferentes com fados da Amália, mornas de Cabo Verde, Folclore, na tentativa de encontrar um material consistente. Portugal e a Itália foram dos poucos países a fazer estes postais-disco. De um lado tocava e do outro escrevia-se o endereço. Não teve continuidade porque com o tempo lombavam”.

Quando olhamos as tecnologias de hoje esquecemos, quase sempre, do seu passado, como se inventar fosse futuro: “Tínhamos uns discos pequenos que eram cartas faladas. Na estação de correios dos Restauradores havia uma salinha pequena com um microfone. A pessoa levava o texto escrito e lia ou dizia de improviso, enquanto uma máquina gravava num pequeno disco. Depois metia-se dentro de uma carta e mandava-se pelo correio. Quem recebia colocava no gira-discos para ouvir a mensagem. Chamava-se Fonopostal. Tenho vários, porque mandava para a minha mãe. A voz era nítida e podia-se gravar mais de um minuto. Também neste formato, Portugal e a Itália foram dos poucos países com este serviço. Era uma carta com a nossa voz, estávamos nos anos 50 do século passado. Hoje, temos as mensagens de voz, uma banalidade”.

Quando não Sabemos Desistir Criamos um Legado 

A Rádio Triunfo, que já não existe, chegou a ser a única fábrica de discos em Portugal. “Tínhamos um catálogo extraordinário, principalmente na ‘Alvorada e Melodia’, com nomes como Amália Rodrigues, Carlos do Carmo, Madalena Iglésias, Tony de Matos, António Calvário ou João Villaret. Havia outras editoras, mas éramos nós que fazíamos os discos. O Arnaldo Trindade fundador da Orfeu não tinha fábrica, tal como a Valentim de Carvalho, uma editora que inicialmente mandava fazer os discos em Inglaterra. Depois montaram uma fábrica que ainda existe. Exportávamos muito para França onde estavam muitos emigrantes. Também vendíamos muito para Angola e Moçambique, mas o dinheiro ficava muito tempo retido nos bancos. Consideravam o disco um artigo de luxo e por isso a transferência não era prioritária. Acabámos por fazer as fábricas de impressão de discos ‘Fadiang’ em Angola e a ‘Somodiscos’ em Moçambique, das quais fui um dos sócios fundadores. As matrizes eram fornecidas do Porto e as capas e etiquetas eram impressas lá”.
  
Depois de um quarto de século passado a gravar discos e a semear emoções, Alberto Eiras regressou em definitivo à sua terra: “Fui um dos accionistas e fundadores em 1968 da Sopete, e fiz parte do primeiro Conselho Geral. Em 1980 fui convidado para integrar a empresa como director do Serviço de Jogos do Casino. Aceitei e por lá fiquei 25 anos. Daí a razão de deixar a editora de discos. Quando me reformei em idade legal, a empresa já estava em mãos dos chineses, mas fui convidado para continuar, embora não tivesse ficado por muito mais tempo por questões de saúde. Praticamente, todos os jogadores fumam e um cigarro é emendado no outro. Havia muito rigor, a porta só abria para entrar um cliente e não se podia abrir janelas. Comecei a ter muitos problemas de garganta e por conselho médico, saí”.

A par da actividade comercial e empresarial (com dois irmãos fundou na Estela a sociedade por quotas ‘Rio Alto – Empreendimentos Turísticos, LDa’), ainda conseguiu dedicar algum tempo à escrita. Para além de crónicas em Jornais e outras publicações, editou os livros ‘Estelenses Ilustres’; ‘Da Estela com Saudades’, e mais recentemente ‘Casa Poveira de Acção Social’, um livro que guarda em definitivo uma memória da cidade: “A Póvoa tem várias instituições e todas elas têm já uma história escrita e publicada que fica para sempre. Esta não tinha e durante 40 anos o Patronato-Oficina foi excepcional, tal como o Lactário de São Tarcísio. Antigamente, as mulheres das aldeias que vinham vender o leite à Póvoa, cerca de 200, juntavam-se todas no largo da Senhora das Dores. De todos os cântaros era retirado uma amostra de 1 decilitro para análise. Essas amostras que resultavam em cerca de 20 litros eram, depois, oferecidas ao Patronato para o Lactário. Cerca de 40 rapazes de famílias muito pobres, sobretudo órfãos, frequentavam diariamente a escola e os mais crescidos, as oficinas de carpintaria e tipografia. Nesta última trabalhou o mestre Joaquim Pereira, conhecido sindicalista e um dos fundadores da Cooperativa A Filantrópica. Ensinou muitos profissionais na sua arte. A importância que ‘Casa Poveira de Acção Social’ teve para a Póvoa não podia morrer na memória dos seus sobreviventes”. E conclui: “Sobre a Póvoa, tenho muita documentação, inclusive do século XIX escrita à mão, que tem que ser interpretada, estudada e publicada. Não sei se vou ter vida para escrever tudo isso, mas não há nada como tentar. É sempre bom sabermos que temos algo para fazer amanhã”.

Por: José Peixoto

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