Voz da Póvoa
 
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Depois dos Cem não Há Descontos

Depois dos Cem não Há Descontos

Pessoas | 5 Julho 2025

 

Viver é ter vontade, mas atravessar um século significa muitos fascículos de uma vida, cada um com a sua memória. Natércia Ferreira Trocado Marques nasceu a 1 de Julho de 1923, na rua José Malgueira. Tem dois filhos, dois netos e dois bisnetos “um dos meus filhos é engenheiro e vive na Alemanha, o outro é bancário aposentado e vive na Póvoa. Vem visitar-me aos sábados”, à Casa Maior - Residência Geriátrica em Terroso, Póvoa de Varzim, onde ingressou em Fevereiro de 2021.

Estudou até ao 2º grau numa antiga escola junto à Igreja do Sagrado Coração de Jesus, “tive duas professoras, a Rita e a Amélia, eram filhas do Branquinho que tinha uma mercearia ao pé do Garrett. Eram boas pessoas e ensinavam bem. Lembro-me do tinteiro e do mata-borrão. Queriam que eu seguisse os estudos, mas o meu pai disse que precisava de mim em casa”.

Da infância recorda alguns jogos tradicionais, “brincávamos na rua a jogar à Macaca, Saltar à Corda, Esconde-esconde, a Cabra-Cega e à Péla na Páscoa com os ‘Laranjas’ e outras tantas brincadeira que já não lembro”. 

Quanto aos afazeres domésticos, Natércia Marques diz que “os rapazes tinham muito mais liberdade. Eu fazia o serviço da casa todo, limpar, arrumar, cozinhar. Tinha uma irmã e um irmão, já falecidos, naquele tempo aprendíamos tudo ainda na idade de ir à escola. Eu perdi a minha mãe tinha seis anos, tivemos que nos fazer à vida”. E acrescenta: “Aprendi costura numa modista, mas os primeiros passos dei-os com a minha mãe que fazia roupa para os filhos e pra fora”.

As ligações familiares ao mar vêm de longe, “o meu avô, António Nunes, era um pescador valente e corajoso, salvou muitas pessoas no mar e recebeu várias medalhas. Tinha uma ‘Lancha Poveira’. Tinha uma sigla de família. O meu pai esteve no Brasil, era comandante de um navio, mas adoeceu e regressou à Póvoa. Comprou um sardinheiro ‘Catraia’, era um barco à vela e a remos. O meu pai não ia ao mar, contratava o mestre e pescadores para irem à pesca da sardinha e apanhar caranguejo. Estou a falar de quando eu era solteira e vivia numa Póvoa com casas pequenas e com muitas ruas em terra ou areia”.

A vida ganhou-a de África, “estive 31 anos em Angola. Fui já casada e com um filho de 3 anos. O segundo filho nasceu em Luanda. O meu marido e o meu cunhado eram empresários de pesca. Com muito trabalho e suor a empresa foi crescendo e chegámos a ter três traineiras, seca de peixe, fábrica de óleos de peixe e camiões de transporte. Tínhamos um prédio de cinco andares e quatro vivendas”.

Natércia Marques encontrou na memória o nome das traineiras: “O Luanda foi o primeiro, depois a Senhora das Dores e Senhora das Graças. O Luanda era uma embarcação velha e foi vendida. O meu pai veio ao Samuel buscar uma traineira nova, a ‘Senhora das Dores, e mais tarde fez uma nova encomenda e veio buscar a Senhora das Graças. Foram construídas em Vila do Conde, nos estaleiros antigos do Samuel, ainda da banda de cá do rio. Foram dentro de um navio para Angola”.  

A revolução dos cravos pôs fim à guerra colonial, mas um novo conflito armado rebentou em Angola, “Eu passei a independência de Angola em Luanda, ainda estive lá uns 4 anos, mas depois a guerra civil acabou por nos pôr a mexer. A vida vale mais que tudo o que lá ficou. O meu filho era engenheiro e vieram da Alemanha buscar-nos. Estive naquele país uns oito dias até nos trazer à Póvoa. De Luanda só consegui trazer um automóvel Mercedes e a minha irmã trouxe outro. O dinheiro que tínhamos ficou pró Banco e os bens ficaram todos para trás, deixámos lá tudo. Quando chegámos à Póvoa, vendemos os automóveis para construir no terreno da casa velha dos meus pais, na rua José Malgueira, um prédio novo. Eu fui sempre doméstica, fazia todo o trabalho da casa, mas quando não se tem uma profissão trabalhamos mais”.

Entre as aparas do trabalho, Natércia Marques cantou no coro da Senhora das Dores: “Cantei com as ‘Soleiras’, uma tinha o pai no Norte, a outra, o sogro era presidente do Rancho Estrelas do Norte. Cantei mais de 30 anos, cantava já antes de ir para Angola e voltei a cantar quando regressei, vieram-me buscar. També foi na igreja da Senhora das Dores que o padre Aurélio me casou aos 26 anos. Nunca dancei em rancho nenhum, mas nas festas do São Pedro vestia de tricana e acompanhava as rusgas, sou do Norte, do bairro da estrela. O meu marido era do Sul.”. E acrescenta que, “nas festas de São Pedro ia comer sardinhas para a casa da minha sobrinha e da minha prima, onde se juntava a família, fazia-se fogueiras e dançava-se na rua. Agora, estou habituada a estar aqui, não gosto de sair, nem para o São Pedro”.

A vida quando se alonga tem as suas perdas, “depois do meu marido falecer, ainda vivi uns anos com a minha irmã que era mais velha que eu dois anos. Faleceu com 94 anos. Os anos foram passando e fui eu que decidi vir para este Lar em 2021, para não dar trabalho a ninguém”.

Para Natércia Marques, passar dos 100 anos não há segredo: “Bebo água. Às vezes, bebia uma pinguinha de vinho, mas pouco. Temos que viver sem grandes sobressaltos e pensar sempre que o dia de amanhã é também para viver. Eu sou de fibra dura, sou do Norte”!

Por: José Peixoto

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