Há sempre alguém que nos diz acreditar ser possível dar ao sonho uma corrente, que tal como um rio entra pelo mar adentro sem imaginar que o poema sobrevive a todas as narrativas. Mas, o futuro é isso mesmo, abrir as portas a uma ideia e deixá-la explicar-se, mesmo que isso leve uma eternidade.
A Póvoa de Varzim prepara-se para receber entre os dias 15 e 22 de Fevereiro, a 26ª Edição do Correntes d’Escritas, um evento literário que volta a reunir mais de uma centena de escritores que tem em comum as línguas ibéricas.
Quisemos desenrolar o fio da memória das Correntes e encontrar um ponto de partida para conversar com o Vice-Presidente, Vereador da Educação e da Cultura da Câmara Municipal, Luís Diamantino Carvalho Baptista, que revelou sentir um certo orgulho em ter participado na construção desta ideia: “Eu era um professor de português interessado em juntar alunos em diversas actividades, algumas organizadas por eles próprios, e entendi que seria interessante fazermos um encontro, inicialmente, de poetas dando relevo à poesia. Quando vim para a Câmara Municipal não perdi a ideia de fazer esse encontro. Em conversa com um amigo meu, aqui na Câmara, descobri que ele conhecia alguém que tinha uma relação próxima com Luis Sepúlveda. Entendi que seria uma porta aberta para aquilo que eu sonhava há muito tempo. Marcámos uma conversa com Francisco Guedes, ele participava na Semana Negra em Gijón com o Luis Sepúlveda, e ficou logo ali acordado que iríamos fazer um encontro de escritores de línguas portuguesa e espanhola”.
O primeiro encontro de escritores de expressão ibérica recebeu o nome de Correntes d’Escritas e contou com “a participação de cerca de três dezenas de escritores onde esteve presente o Luis Sepúlveda, o Onésimo Teotónio de Almeida, o Manuel Rui, o Ivo Machado, entre outros. Gente que ainda perdura na nossa memória e em presença. O encontro foi realizado no auditório da Biblioteca Municipal que leva pouco mais de 70 pessoas, e tínhamos meia casa, reduzia-se quase só aos escritores. No segundo encontro, entendemos que podíamos fazer no Auditório Municipal. Tivemos muito mais público, mas ainda meio cheio. A partir daí foi sempre em crescendo”.
Ao longo dos 25 anos de Correntes há uma marca que se mantém, “desde a primeira edição que levamos os escritores ao encontro com os alunos nas escolas. Era muito importante este contacto e isto deu resultado, conseguimos criar esta ligação dos jovens ao livro e à leitura. O principal objectivo destes encontros foi sempre promover o livro e a leitura. A partir destes dois primeiros encontros as coisas foram crescendo, recebemos cada vez mais escritores e neste momento temos que fazer uma determinada selecção, podíamos ter aqui muito mais escritores, mas pensamos que uma centena é já um número muito razoável”.
O aumento do número de escritores convidados coincide com o crescimento das actividades das Correntes? “Exactamente, os escritores têm que se dividir por várias iniciativas do evento, primeiramente as escolas, que são sete no concelho. Depois, passamos às freguesias, primeiro fomos a duas, depois três e agora vão a todas descontando a da cidade onde se passa o evento literário. São sempre dois ou três escritores que vão às freguesias. Ou seja, temos muitos escritores numa entrega total a ajudar-nos naquilo que nos propusemos, a promover o livro e a leitura. Contam estórias, cativam os jovens, tanto é assim que no Garrett temos sempre imensos jovens a assistir às mesas, sobretudo à sexta-feira e ao sábado quando estão mais livres para participar. Esta ligação é importante por despertar os jovens para temas da actualidade”.
E acrescenta: “As Correntes fazem um trabalho de intervenção. Intervenção nas ideias, intervenção social, intervenção em tudo aquilo que diz respeito ao ser humano, e com inteira liberdade. Sempre foi assim. Gosto de chamar a atenção para isso porque nós aqui no Correntes d’Escritas tivemos momentos de alguma fricção por aquilo que se passava no mundo, em Portugal, politicamente até, e nunca houve espaço para a censura, para a limitação das palavras. As palavras não têm fronteiras, não podemos ter medo das palavras, as palavras estão aí para serem usadas. Houve abaixo-assinados entre escritores, houve momentos em que escritores tomaram posição pública sobre determinada matéria, mas isto é um espaço de liberdade que se vive no Correntes d’Escritas onde todos têm direito à sua opinião”.
Os Prémios Literários Ajudaram a Solidificar o Evento
“A intenção era dar continuidade e fazer crescer uma ideia. Em muito pouco tempo passámos a ter quatro prémios literários, o Prémio Casino da Póvoa, Fundação Luís Rainha, Prémio Papelaria Locus e Prémio Literário Luis Sepúlveda. O Prémio Casino da Póvoa expandiu e projectou o Correntes d’Escritas para o exterior. Nos premiados temos escritores de língua espanhola, de língua portuguesa, alguns de fora de Portugal. Temos sempre que ter a preocupação de criar outros momentos, inovando sempre. Criámos as conversas entre escritores que acontecem na sala de actos do Garrett enquanto está uma mesa na sala principal a decorrer. Em cada uma das iniciativas há a possibilidade de o público intervir. Temos cinema numa parceria com o cineclube Octopus, e teatro com o Varazim. Temos inúmeras exposições de fotografia e pintura”.
Daniel Mordzinski regressa com imagens do escritor Luis Sepúlveda, mas a novidade vai apresentar-se no espaço expositivo da biblioteca Diana Bar, “vamos ter uma grande exposição de obras do Casino da Póvoa angariada ao longo dos tempos pela Varzim Sol. Trata-se de um repositório de arte que o Casino tem e que vai ser mostrada ao público. As Correntes não param e estão sempre em movimento. Para além da semana que reúne as escritas e os escritores, há sempre ao longo do ano lançamentos de livros destes mesmos autores, que regressam dessa forma à conversa com os seus leitores, participam nas Olimpíadas da Escrita com os jovens alunos. Este ano é a vez de Álvaro Laborinho Lúcio com mais de uma centena de jovens das escolas, a escrever sobre um tema lançado pelo escritor. As coisas não acontecem por acaso, há sempre um trabalho a projectar as ideias. Não há milagres, mas é preciso manter viva a chama. Na Póvoa de Varzim sempre houve muitos lançamentos e apresentações de livros, um movimento que é importante manter”.
Mais do que ser o primeiro ou manter-se em primeiro como o maior e mais importante evento literário do país, o Correntes preocupou-se acima de tudo em cultivar livros para colher leitores, ou seja, trabalhar a arte da memória e saber preservá-la. “A prova disso é a formação de professores (Correntes em Rede) apoiada por escritores e especialistas universitários. É uma acção que temos realizado nos últimos seis anos e as inscrições têm um limite sempre preenchido. Temos sempre quem fique de fora e tenta a sorte no ano seguinte. Temos também cursos de Escrita Criativa com a presença de escritores e qualquer pessoa se pode inscrever. Entendemos que devemos abarcar todo o espectro que diz respeito à literatura, sobretudo à escrita e à leitura. Não é por acaso que temos sempre Vozes Transeuntes a espalhar a poesia pelas ruas e nos espaços menos esperados, como o Mercado Municipal onde já não podem faltar, porque as pescadeiras e outros comerciantes assim o exigem. A artista Isabel Babo vai fazer um estendal no Mercado. A cultura é o principal caminho para a promoção de uma cidade, há outros, mas este eleva-nos”.
As residências artísticas trouxeram a possibilidade de encontrar outros caminhos para a criação literária falando das pessoas, das casas, dos lugares, da Póvoa? “Foi mais uma ideia feliz que acaba na publicação de um livro. Aliás, no Correntes d’Escritas temos publicado imenso, aproveitando o facto de termos connosco escritores muito criativos que conseguem sentir a Póvoa de uma forma muito pessoal. São pessoas com experiências, sensibilidades e conhecimentos diferentes e que vêm cá fazer uma residência literária, vivendo um dia ou dois num espaço proposto. Da casa Manuel Lopes saiu uma peça de teatro que se chama ‘A Casa’ e que foi editada e já vai na terceira representação. As pessoas continuam a querer que se faça essa dramatização na casa Manuel Lopes, onde há um determinado número de espectadores”.
Reflectir em Onze Mesas a Pintura d’Descritas
Uma das novidades deste ano é o tema das mesas que passou a olhar para quadros de grandes pintores que ilustram um tempo e uma eternidade. É um outro mundo artístico onde há uma literatura para ser interpretada pelas cores? “As Mesas foram sempre pensadas a partir de um tema que os escritores pudessem desenvolver à sua vontade, por vezes discorrem sem falar do tema porque há liberdade no sentir de cada um. Fomos escolhendo versos a partir dos poetas ou frases de romances como aconteceu com Agustina Bessa-Luís ou com Luísa Dacosta. Este ano entendemos que seria gratificante mudar o olhar para a arte plástica, criando os textos, o pensamento a partir daí. Uma imagem pode ter muita força, daí termos pegado em pinturas conhecidas mundialmente levando os participantes em cada mesa a desenvolver o tema. Não se trata de explicar o quadro, mas o nosso próprio receber da imagem. É um desafio diferente que pode ser uma inovação, não só para o escritor, como para o leitor presente. Estou curioso”.
Tal como a tradução, a pintura vai buscar uma outra universalidade transportando o Correntes d’Escritas para fora do espaço ibérico: “Inovar, saber crescer sem perder as nossas raízes, as Correntes podem sempre regenerar-se, descobrir outros caminhos que irão sempre desaguar nos livros, na literatura”.
A tradução pode ser mudar a língua sem mudar a intenção? “A tradução é importante para semear a mensagem, torná-la universal, mas é uma outra obra no sentido em que passa por outra pessoa. As personagens, a narrativa seja em prosa ou na poesia está lá, mas chega ao leitor com as palavras da língua do tradutor, que não são forçosamente as do seu autor. O tradutor com a sua experiência tenta ser isento, mas definitivamente nunca é”.
A primeira edição do Correntes d’Escritas tinha como base o Centenário da Morte de Eça de Queirós, nascido na cidade. Este ano, celebram-se os 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco: “É um escritor que está muito ligado à Póvoa de Varzim e como não podia deixar de ser, será lembrado nas Correntes, assim como os 500 anos de nascimento de Camões ou os dez anos sem Luísa Dacosta. A Póvoa tem sido um local por onde passam e vão continuar a passar muitos escritores; e o Correntes d’Escritas potenciou essa passagem. Em todos os encontros temos cerca de 30% de escritores que vêm pela primeira vez. Uma das coisas que nos orgulha muito é terem passado por aqui jovens escritores que agora são nomes consolidados muito para além do espaço das línguas ibéricas. A exemplo disso, temos o Ondjaki ou o poveiro José Alberto Postiga, entre tantos outros. Nós achamos que as Correntes é uma oportunidade que todos temos que agarrar. Temos aqui editores, livreiros, tradutores, tudo junto pode ser aproveitado para exponenciar este espaço de ideias”.
Quando a inteligência era apenas humana, sempre houve o cuidado de perceber nas leituras se estávamos perante um texto original ou um plágio. A Inteligência Artificial na literatura não é uma espécie de plágio dos tempos modernos? “Entendo que a Inteligência Artificial possa ser um ajudante, colaborar e servir de apoio, de ordenação disto ou daquilo, mas creio que um escritor ou um tradutor não será nunca substituído por esta ferramenta que vai buscar ao que existe em depósito. Acontece que o faz com uma rapidez louca, tudo o que tem a ver com aquilo que pedimos, mas depois temos que saber filtrar. Pessoalmente, nunca escrevi nada a partir dessa ferramenta, entendo que somos limitados nas nossas ideias se precisarmos desse recurso. Mesmo que se desse o caso de escrever melhor, eu prefiro os meus textos, a minha capacidade de dizer escrevendo, sentindo sempre”.
A Inteligência artificial responde, não questiona, não se emociona. “A nossa experiência marca a nossa escrita, a Inteligência Artificial formata-nos a todos”.
Mais Importante que Chegar é Saber Fazer o Caminho
Um quarto de século acorrentado a um evento que ajudou a criar e a crescer, a 26ª edição será a última como responsável pela Cultura, mas creio que o espectador atento vai continuar a seguir o evento: “Naturalmente. Vou continuar a acrescentar-me desta riqueza que acontece na Póvoa, mas na plateia. Hoje, sinto-me como um pai que casa uma filha. Há um sentido de felicidade e ao mesmo tempo de ausência. A junção dos dois sentimentos passa a conviver comigo. Há uma coisa que tenho que agradecer, é estar aqui na Câmara Municipal. Na política há coisas menos boas, mas estamos aqui porque queremos, ninguém nos obriga. Nunca me ouviram queixar por estar na política com aquele sentido de estar a roubar tempo à minha família. Ao longo destes quase 30 anos nunca ninguém me ouviu dizer isso. Estava aqui porque queria, dava-me prazer e satisfação contribuir para a minha comunidade. Cada vez que terminam umas Correntes, sinto-me um indivíduo realizado, missão cumprida, vamos pensar na próxima. Todos sabemos que não podemos mudar o passado, mas podemos sempre mudar o futuro, fazer por ele”.
Como é conviver durante uma semana com tanta gente criativa? “As pessoas grandes são humildes. Por aqui passaram e continuam a passar grandes escritores, alguns já não estão entre nós, mas continuam por cá com a sua obra e na nossa memória. São pessoas simples, fantásticas, conversam de tudo como qualquer homem ou mulher comum. Por isso, é muito fácil dialogar, desde o primeiro abraço de amizade até ao momento em que partem para as suas vidas, sempre com um até já. Ser simples é próprio dos homens e mulheres grandes. Ser amigo é mais importante que ser Vereador, andarei por cá como leitor a dar e a receber o abraço”.
Com o Luís Diamantino livre, podemos esperar o abrir da gaveta do autor? “Desde sempre que tenho um projecto de um livro que se prende sobretudo com as minhas origens. O meu pai foi emigrante, foi para o Brasil ainda rapaz. Ele contava-me muitas histórias da sua viagem, daquilo que fez no Brasil, e eu vou servir-me dessas memórias. Já estou a escrever esse livro. Curiosamente, vem num momento em que se fala muito dos migrantes. Nós somos um país de emigrantes e o meu pai é prova disso, e essa loucura de viagem que ele fez, que eu sempre achei uma aventura extraordinária, mas também um momento de sofrimento pelas incertezas. O livro abarca essas histórias e, naturalmente, eu acabo por entrar com a minha própria história, nas pessoas que me rodeiam. É um projecto que anda comigo, vem de um tempo em que ainda não tinha sequer entrado na Câmara Municipal”.
E conclui com uma certeza: “Sempre tive uma relação muito grata e muito forte com os escritores, pessoas com horizontes abertos, que não conhecem só a sua aldeia. Tive sempre uma relação livre com os jornalistas. Acho que é um momento bom para sair. Creio que há uma coisa em que saio a ganhar - hoje, tenho mais amigos”.
Por José Peixoto
Fotografia de Rui Sousa