Somos todos iguais e precisamos das mesmas coisas para viver. O mundo teria que ter a mesma diversidade de plantas e animais, os rios a galopar montanhas noivas de frio, os mesmos oceanos, independentemente de ensaiarmos uma cegueira temporária ou definitiva. Ver não é olhar, mesmo para quem nunca viu, as mãos e o olfacto, por vezes, explicam melhor que a luz.
Miguel Carmelita e Costa Alves de Sá soltou o primeiro choro na Ordem da Lapa, no Porto, em 1987. Começou por ver o mundo a cores, foi aprender as primeiras letras e quando completou o 9º ano de escolaridade as cores esbateram-se e completou o 12º ano a preto e branco.
“Aos 14 anos deixei de ver, tive uma retinose pigmentar. A partir daí tive que aprender Braille. Passei dos testes e resumos em computador para os livros em braille, só que fazia tudo em áudio. Na altura, trocava o trabalho pela preguiça”.
As primeiras experiências no mundo do trabalho surgiram depois de frequentar duas formações na ACAPO, Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal, “uma de apoio à comunidade tendo ficado a prestar serviço no Hospital de São João como auxiliar de Fisioterapia. Através do Rotaract (programa internacional de jovens, cujo objectivo é, sobretudo, o desenvolvimento da capacidade de liderança e do sentido de responsabilidade), um movimento de apoio à comunidade aqui na Póvoa de Varzim. Fiz uma formação e em 2010 comecei a dar massagens. Anos mais tarde, trabalhei na Biblioteca Municipal Rocha Peixoto como recepcionista e depois na Misericórdia, integrado num programa de estágio ocupacional do Instituto de Emprego e Formação Profissional, adaptado para pessoas com deficiência. Como não gosto de estar parado, consegui uma oportunidade no MAPADI como auxiliar de Fisioterapia e no terceiro ano tive formação de SPA. A partir daí comecei a fazer massagens de relaxamento e de SPA”.
De onde vem esta vocação pela Fisioterapia? “Em miúdo aleijei-me numa perna e precisei fazer fisioterapia durante um tempo. Nessa altura, dei muita atenção às minhas obrigações e aos ensinamentos do fisioterapeuta que me tratava. Mas, tudo começou numa espécie de brincadeira. Um certo dia um amigo dos meus pais estava com uma dor nas costas e eu assim do nada fui procurando os músculos e massajando. Ficaram todos admirados com o meu à-vontade e jeito. Depois, no 9º ano somos obrigados a escolher uma área de ensino, ciências e tecnologias ou ciências humanas, escolhi a primeira. Tanto gostei desta área que quis segui-la”.
E acrescenta: “Quando quis ir para a faculdade fazer uma licenciatura em fisioterapia, em Portugal não tive essa possibilidade por ser cego. Para fazer Fisioterapia tinha que ir para Chelas para a ACAPO ou para Vigo na Galiza. Mas, se quisesse seguir advocacia ou informática não havia problema”.
Actualmente, Miguel Alves de Sá, faz massagens, num gabinete de enfermagem na Rua Elias Garcia: “Trabalho por marcação, as pessoas ligam comigo (912 106 376) e eu marco nos Enfermeiros que cedem o espaço entre as 8h30 e as 17h30. Quando as pessoas não têm disponibilidade neste horário, tenho um local na Rua da Junqueira, Travessa Cais Novo, onde faço as massagens noutros horários. As pessoas trabalham e temos que estar disponíveis para as servir, mesmo aos fins-de-semana”.
O tipo de massagens é diversificado: “faço massagens de relaxamento, massagem terapêutica direccionada a pessoas que estiverem muito tensas. Também faço massagens com cristais preciosos, ajuda a tirar as contracturas. Durante a massagem vou dando indicações à pessoa, se a pressão está boa, se mais, se menos”.
Ser invisual dá-lhe outra sensibilidade às mãos? “Com o tacto eu consigo perceber onde a pessoa está mais tensa. Ao longo do tempo fui desenvolvendo os outros sentidos, apurando. No fundo perdemos um sentido, mas reforçamos os outros. Posso não conseguir fazer tudo o que está relacionado com a fisioterapia, mas quando se trata do uso das mãos, tenho o caminho livre. A pessoa move-se por ela e eu com as mãos recupero a sua saúde, o seu relaxamento. Por vezes, as pessoas chegam às minhas mãos feitas num ‘oito’ e saem da marquesa com outra qualidade de vida. Os ais passam a sorrisos. Eu sei onde tenho que insistir mais para que a pessoa fique mais relaxada e recuperada. Diria que algumas pessoas para se deitarem na marquesa tem alguma dificuldade, mas depois da massagem levantam-se como novas. É isso que elas me transmitem. Como tenho o tacto mais apurado penso que tudo é mais conseguido”.
Passar nos Passeios não é o Mesmo que Passear por Eles
“Vivo em Vila do Conde com os meus pais, mas tenho casa na Póvoa. Não tenho jeito para cozinhar e compro comida pronta a mastigar ou aqueço no micro-ondas. Conheço todas as ruas, os seus ruídos, mas há sempre quem nos esqueça”.
Como invisual continua a ter dificuldades para caminhar pela cidade? “Algumas. Quando sei que o passeio está desobstruído e de repente aparecem os taipais de uma obra a barrar o passeio ou uma viatura, isso obriga a descer à estrada para contornar o obstáculo. Às vezes, recebo ajuda de uma pessoa, mas o que ajudava mais era que tudo estivesse bem sinalizado para os invisuais e até para pessoas de mobilidade reduzida. Na minha cabeça o mundo está livre, depois nem sempre é assim. Os pinos colocados na berma dos passeios também dificultam, principalmente no início, depois habituamo-nos a detectá-los com a bengala, mas aqueles mais pequenos são mais perigosos, por vezes magoam e podem provocar uma queda”.
O que aconselharia para termos uma cidade sem barreiras? “As obras deveriam estar mais sinalizadas, com isolamentos de chapa, o som facilita. Os sinais sonoros de um semáforo são muito importantes. Penso que deveria ter mais semáforos sonoros junto das passadeiras. Na Póvoa, temos dois na Praça do Almada e ao lado do mercado. As rampas nos passeios também facilitam muito. Eu consigo saber quando é uma passadeira porque a rampa desce para ela. E quando está ao mesmo nível do passeio, com a bengala vou batendo na berma elevada do passeio até que este termina. Quem vê não tem essa percepção, mas quem faz a obra pode fazer logo bem feito, a pensar em todos, na tal inclusão que tanto se fala. Quem não conhecer as estações do Metro e se não se ouvir a voz, fica desorientado. Eu tenho que começar a contar as estações desde a Póvoa de Varzim até ao meu destino, Vilar do Pinheiro. Os motoristas esquecem facilmente de activar a voz, eu sei que incomoda, mas temos que pensar no jeito que dá a quem não vê”.
Quanto à tecnologia, se for para ajudar é sempre bem-vinda: “O meu telemóvel é adaptado. Digo os números e marca automaticamente. Lê todas as mensagens, seja do Facebook ou whatsapp e grava o que eu quero enviar”.
Por: José Peixoto