Voz da Póvoa
 
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As Sombras de Uma Azinheira que Sabia a Idade

As Sombras de Uma Azinheira que Sabia a Idade

Pessoas | 15 Fevereiro 2023

 

Não há pressa, ouvi por entre outras vozes discordantes. Creio que o tempo nos dá tempo, mesmo quando nos queixamos da falta que nos faz. O amadurecimento tem o sabor da compreensão e, se ajustado pela memória, é bem capaz de interrogar a história.

Álvaro Laborinho Lúcio é mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e magistrado de carreira. Entre outros valores democráticos exerceu na década de 90, as funções de Secretário de Estado da Administração Judiciária, ministro da Justiça e deputado à Assembleia da República. Estas são apenas algumas pinceladas retiradas de uma vida cheia, onde encontramos também um escritor capaz de nos fascinar pela sua inquietante musicalidade. 
 
Fez um ano que lançou no Correntes d’Escritas o romance ‘As Sombras de Uma Azinheira’ que me deixaram a ideia de uma árvore ao contrário, começando pelas folhas, pelos ramos, chegando ao tronco como se engrossasse na memória indo pela raiz já velho, terra dentro. Não entrou para morrer, mas para fortalecer a memória, única palavra que conhece a eternidade. Foi essa eternidade que o escritor foi interrogar nas portas que Abril abriu: “Eu quero essa eternidade para o 25 de Abril, mas quero sobretudo essa eternidade para os valores do 25 de Abril. Nós precisamos dar passos para desligar os valores da sua matriz originária porque ela tem uma contextualização histórica. Agora, nós precisamos é de reflectir sobre eles, de os actualizar e de os projectar para o futuro. Temos sempre, evidentemente, um retorno às origens, julgo que é importante lá voltar, até para celebrarmos as pessoas, aquelas que estiveram na origem das mudanças tão importantes que aconteceram em Abril de 1974, mas mantendo essa matriz uma espécie de âncora relativamente àquela matriz inicial dos valores”.

 Saber multiplicar os valores de Abril e saber caminhar com eles, reforça Álvaro Laborinho Lúcio: “Quando falo na árvore, que pode ser interpretada como diz e bem, não só pelo que acabei de dizer, mas também por uma outra interpretação. Enquanto no Grândola Vila Morena, do José Afonso, o que nós temos é, à sombra de uma azinheira, no livro temos as sobras de uma azinheira. E estas sombras significam que ao longo destes quase 50 anos, algumas áreas se mantêm sombrias ou algumas sombras novas foram surgindo. E é sobre elas que nós temos que reflectir porque é fundamental que sustenhamos esta ideia, quando temos liberdade, perante a sombra o que devemos é criar luz e não ficar a moer na sombra e a torná-la mais sombria do que ela é. É um pouco essa intenção que eu tenho neste livro”.
 
E acrescenta à memória uma ideia de eternidade: “Quando nós falamos da idade e no envelhecimento, esta figura do livro que vai tratando da sua própria velhice, que vai dizendo que o que prefere é, antes que a solidão chegue, que ele próprio enlouqueça, ir um dia ao cemitério falar com os mortos. E ao falar com os mortos não vai falar evidentemente numa vida eterna, numa visão escatológica, numa coisa religiosa ou não. É meramente simbólico porque o que ele diz é que há de facto uma eternidade onde nós podemos sempre projectar os nossos sonhos”.

Para o escritor Álvaro Laborinho Lúcio, “verdadeiramente quando nós pensamos na política, quando pensamos no combate ideológico, não estamos a fazer outra coisa se não a tentar perseguir os nossos sonhos e isso é o que nós fizemos a vida toda. Isso deve manter-nos, desde o momento em que temos consciência dos sonhos até ao momento em que vamos embora. Aí não há idades, não há envelhecimento, há vida, há pessoas, há cidadãos e há uma comunidade geral que envolve todos independentemente da idade. Isso é que me parece que é importante reiterar na vida”.

A Negação do Passado não Produz um Abril Melhor 

As Sombras de Uma Azinheira trazem consigo uma reflexão de um tempo antes e depois de Abril: “Eu diria que são 90 anos de reflexão, 45 anos antes e 45 depois. A reflexão dirige-se a esse período longo porque quando nós falamos do tempo antes da revolução, temos sempre uma tendência para levar a reflexão ao Estado Novo, à ditadura, àquilo que nós quisermos vencer. Esquecemo-nos que muitos dos que fizeram o 25 de Abril eram habitantes desses 45 anos, vinham desse tempo e esse tempo também comportava luta, a tenacidade com que se lutou contra o regime, que levou à vitória sobre aquilo que era a ditadura. Portanto, nós não podemos esquecer esses 45 anos. Não há aqui uma memória boa e uma memória má, não há memórias boas e memórias más, há uma memória geral, global. Depois, entre elas há períodos melhores e períodos piores, há períodos bons e períodos maus, mas temos que saber conviver com eles para podermos a cada momento, quando tomamos uma posição, não estarmos a ser apenas uma expressão daquilo que são as nossas emoções não controladas, mas uma expressão daquilo que é o nosso pensamento crítico e reflexivo sobre a realidade à qual nos dirigimos”. 
  
O convite feito aos personagens que vem almoçar com o autor a meio do livro, para Álvaro Laborinho Lúcio entende-se pela convicção de que não iriam aceitar: “Isso tem uma simbologia e serviu acima de tudo para colocar uma ordem. O livro teria sempre uma primeira parte e uma segunda parte, porque há ali uma mudança de registos entre uma e outra, mas eu entendi que ao ter essas duas partes, o leitor se obedecer ao meu desejo como escritor, vem envolvido na estória. Eu quis criar um intervalo e simbolicamente esse almoço que o autor tem com as personagens, para descarregar um pouco a parte emotiva e aumentar a parte racional, para que o leitor leia o livro emocionando-se, sim, mas sem perder o sentido crítico e a razão da racionalidade, que deve estar sempre presente num livro desta natureza, desta minha verdade”.

Matar o pai é uma metáfora, mas a Catarina nasce exactamente na noite da revolução e perde a mãe. Pretendeu-se criar um quebrante com esse passado, é como se nascesse ali a liberdade: “Matou-se o regime anterior e ainda bem, mas aqui a ideia é outra. Nós termos um profundo reconhecimento sobre o 25 de Abril, um profundo reconhecimento dirigido às pessoas que o fizeram, mas chegamos a um ponto em que nós dizemos – 50 anos depois somos nós quem está a construir o futuro e não como representantes do movimento do 25 de Abril, isso acabou, está morto. Nesse sentido é edipiano apenas, portanto psicanalítico, não no sentido moral, nem no sentido ético, está morto porque nós agora somos livres independentemente do 25 de Abril. É nessa medida que julgo termos que raciocinar para construirmos um espaço e para envolvermos quem é jovem e não tem nenhuma referência do 25de Abril, naquilo que é a construção do futuro em respeito pelos valores do 25 de Abril, mas sem ter necessariamente que ser os valores do 25 de Abril. São os valores que nós construímos agora já pela via da democracia”. 
  
Esta Catarina tem algo de Eufémia embora não o queira ser: “a Catarina é da vontade dos pais, que assumiram antes do nascimento que – se for rapaz vai chamar-se Álvaro e este seria ‘Álvaro Cunhal’ e se for rapariga será Catarina e que se trata de ‘Catarina Eufémia’. Esta Catarina em concreto vive a angústia de no fundo não saber quem é, porque não sabe se é a projecção da Catarina Eufémia se é ela própria. No fundo, ela diz ter muito respeito pela Catarina Eufémia, muito respeito pela situação em si, pela luta dela, pela luta tenaz que foi tragicamente concluída, mas – eu não quero ser Catarina Eufémia, sou outra pessoa e quero ter outro nome, quero afirmar-me por mim, criar a minha própria identidade”.

“Até hoje não se inventou nada melhor que as pessoas”

O autor escreve sempre para surpreender, mas pode acabar surpreendido com o que escreve: “Não sei se saberei responder a essa questão. Eu não tenho uma formação de uma Faculdade de Letras, não trabalho o clássico que vai construindo o próprio escritor. Eu acabo a escrever a partir dos interesses culturais que fui alimentando ao longo da vida, daquilo que fui lendo, da maneira como fui vendo como se escreve e, portanto, passei eu a escrever também. Mas, é nesta medida que eu considero que tenho uma formação que vem de fora da formação canónica, mais clássica para ser escritor. É nessa medida que eu digo escritor amador, mas também entendo que uma perspectiva amadora para determinadas práticas não reduz a qualidade das práticas, coloca-as é noutro padrão de avaliação. Acho que não terei sido particularmente surpreendido porque eu ia escrevendo aquilo que antecipadamente já tinha definido que queria escrever. Agora, não posso deixar de dizer que quer no desenvolvimento da figura do João Aurélio, quer no desenvolvimento da figura da Catarina, em muitos aspectos eu fui arrastado pelos dois. Algumas vezes eu acordava de manhã e ia escrever aquilo que me tinham dito durante a noite sem eu dar por isso. Portanto, há aqui um momento em que eu já não sei se estou a escrever por mim, se estou a escrever por aquilo que as personagens me pediram que escrevesse”.

Uma coisa é escrever de rajada um pensamento, outra é dialogar durante o dia ou noite com os personagens e num repente mudar a estória. “Sou muito assim, preciso de me identificar com as próprias personagens, até na espectativa de que o leitor depois também se identifique com elas. Ao mesmo tempo também gosto de ir estabelecendo uma relação imaginária com o leitor, não é que escreva para os leitores, mas a pensar no leitor, escrevo na ideia que o leitor vai acrescentar mais ao próprio livro. Eu acho que os meus livros serão sempre diferentes a partir do momento em que são lidos e passarão a ser aquilo que os leitores lerem, e não necessariamente aquilo que eu escrevi”.

Álvaro Laborinho Lúcio teve um percurso político, mas nunca pareceu aquele político: “Não rejeito a dimensão política de um determinado período da minha vida em que não estive como técnico, estive como político. Agora, eu nunca me inscrevi em partido nenhum, fui sempre independente, isso não significa nada de melhor ou de pior. Penso que o independente não é moralmente superior aos outros, apenas nunca tive inscrição partidária. Enquanto no exercício de funções, fui sempre leal às estruturas partidárias que apoiavam a área onde eu estava. Isso para mim é fundamental, depois saí, passei a viver a vida de outra forma, desliguei-me completamente quer de aproximação de natureza partidária, quer de qualquer aproximação institucional a uma vida política activa”. 

E recorda: “Evidentemente sou cidadão e foi como cidadão que desempenhei uma função. Melhor ou pior, foi o que consegui fazer e é como cidadão que estou na vida pública, isso sim interessa-me muito. Tenho perspectiva política, tenho pensamento político, tento agir de acordo com ele, mas não tenho nenhuma vinculação partidária nem perspectiva de carreira política, nunca a tive, nem quando a exerci”.

Algum dia pensou entrar pelos capítulos da palavra escrita: “Tive sempre o desejo de experimentar. Quando escrevi o primeiro livro e assumi que queria ser escritor não sabia se o conseguiria. Hoje, acho que dentro das limitações que tenho não me envergonho daquilo que faço, não tenho nenhuma ideia de que sou um escritor acima da média, longe disso, mas sinto-me bem comigo próprio a fazer isto. A área da literatura é um ambiente onde eu me sinto francamente bem, sem andar a fingir que sou agora aqui um jovem com uma grande abertura à contemporaneidade. Eu tenho abertura à contemporaneidade, mas é como cidadão, como pessoa que se foi interessando culturalmente pelas coisas e que está nelas com naturalidade. Isso sim, talvez tenha ido além daquilo que eu próprio imaginei que era possível”. 

E o escritor traduz o fio condutor da sua opção: “Aqui, as Correntes d’Escritas são bem exemplo disso, onde eu me sinto perfeitamente familiarizado, estou aqui nas Correntes como se fizesse verdadeiramente parte delas, já são vários anos em que aqui estou, isso é muito bom e reconfortante e terá sempre a minha gratidão por todo o tempo. As correntes são um exemplo de excepcionalidade que, eu só tenho pena que sejam excepcionalidade, era necessário que se multiplicasse muito mais pelo país fora, porque é isto que dá sentido à vida, é isto que chama as pessoas para a manifestação do melhor que há nelas. Não andamos aqui propriamente à bulha por coisas que são muito pouco significativas, mas conversamos as nossas divergências para perceber, como costumo dizer – que até hoje não se inventou nada melhor que as pessoas. Então vamos usá-las com as qualidades que elas têm, com a capacidade de se porem em comum umas com as outras e darmos sentido à vida que é uma coisa muito importante”.   

José Peixoto

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