Voz da Póvoa
 
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Anos a Entardecer sem “Fé em Deus”

Anos a Entardecer sem “Fé em Deus”

Pessoas | 23 Janeiro 2022

Dois Anos a Entardecer sem “Fé em Deus”

O mar é a seara ondulada pelo vento e os anzóis são as foices da ceifeira. Os pescadores enganam a idade com as redes do rosto e negoceiam o pão com as tempestades. O mar ainda é o mesmo de antes, cenário de valentia e de arrojados homens, temperados pelo sal da memória e do Tempo.

Manuel Agonia Fernandes Areias (Nia Preu) nasceu no dia de Todos os Santos de 1935, na Póvoa de Varzim. A caminhar para os 10 anos, a sua escola foi o mar onde aprendeu a dialogar com as marés e a traçar o rumo ao leme dos barcos e da vida. Em cerca de 46 anos foram as redes e os anzóis que calejaram as mãos, também na pesca do bacalhau na Groenlândia ou em Moçambique a pescar o Barbo e a Bicuda. A partir de 15 de Setembro de 1991, agarrou o leme da Lancha Poveira do Alto “Fé em Deus” e nunca mais o largou. Em 2016 recebeu a Medalha de Reconhecimento Poveiro.

Recuar à aprendizagem das primeiras letras é encontrar um tempo de ensino público em casas particulares: “Os primeiros dois anos foram na escola do Simões, em frente à estação do caminho-de-ferro, era um senhor de uma certa idade, muito exigente, queria que nos comportássemos direitinho. Naquela idade era difícil, mas o professor sabia como. Usava uma vara comprida que chegava às orelhas e uma palmatória que, se as mãos se pusessem em fuga eram os cotovelos que aqueciam. Depois passei para a Escola do Azeiteiro que ficava na Rua do Século onde fiz o resto da segunda classe. No ano seguinte, fui para a Escola do Bota-prá-Mula que ficava na Rua Santos Minho, num primeiro andar. Aí fiz a 3ª classe”.

Agonia Areias não foi mais além porque se fascinou com outras aventuras: “Na realidade, comecei a gostar mais de ir com os amigos aos ninhos, às espigas de leite ou às uvas dos lavradores, do que ir à escola. Quando o meu finado pai se apercebeu das malandrices deu-me a escolher entre a escola e o mar. Quando o tempo estava de feição eu queria ir para a escola, mas quando não estava, queria ir para o mar. O meu pai dizia que ‘o mar amança velhacos’ e como percebeu que eu queria brincadeira, obrigou-me a gramar o mar na pesca da sardinha, na catraia Egas Moniz, tinha 9 ou 10 anos. Na altura ainda não havia motores nos barcos poveiros. Eram todos a remos e à vela”.

Um antigo postal mostra uma sementeira de Lanchas e Catraias no sequeiro da ‘praia do peixe’, é o tempo da infância: “Era a paisagem habitual do areal nos finais da faina ou em tempos de Inverno. O ala-arriba era sempre feito a Norte, mais abrigado dos exageros do mar. As mulheres entravam mar dentro para recolher o peixe, depois puxavam os cabos e a Companha alombava o barco areia acima. Às vezes havia algumas quezílias fruto dos azedumes da rivalidade entre o Norte e o Sul, mas a praia do peixe era de todos. No meu tempo de rapaz brincávamos às escondidas entre os barcos. Havia sempre alguém a contar em voz alta até 30 ou 40, enquanto os outros se escondiam, mas por vezes tapava os olhos com os dedos entreabertos e via sempre algum a esconder-se. Também se jogava à cabra-cega, ao pião ou à bilharda”.

Mestre Nia Preu, como é conhecido na colmeia piscatória, aprendeu todas as artes de pesca e a olhar o leme como guia da vida no mar: “Quando gostamos não é difícil aprender a iscar anzóis, lançar redes ou desmalhar sardinhas. Antes dos barcos já rabiava entre os penedos da Catula com os ‘estralhos’ a apanhar peixe. Andei sempre metido no mar, mesmo que fosse na penedia junto à costa. Com a experiência tornamo-nos sabidos. O mais difícil foi andar na pesca horas sem fim e nem sempre a safra corria de feição. O Leme só vinha parar às minhas mãos com o mar calmo e pouco vento, o meu finado pai gostava de levar e trazer a Catraia pela mão”.

E acrescenta: “Se estivesse vento fazíamos a pesca à vela. Quando nos deixava ficar, metia-se o arrasto à água e remávamos com 3 ou 4 remos de cada lado até o vento regressar. Por falta dele viemos muitas vezes a remar até ao cais. Os barcos da sardinha eram os únicos que não subiam no areal porque chegavam da faina por volta das 8 ou 9 horas da manhã e regressavam à pesca às 3 ou 4 horas da tarde. Descarregava o pouco ou muito que trazia nas ‘cavernas’ e ficava no largo com um rapaz dentro que aproveitava para dormir. Isso aconteceu muitas vezes comigo, enquanto o meu pai e a Companha iam para casa descansar”.
 
Um Rapaz Feito Homem na Odisseia do Bacalhau

“O mar entranhou-se na pele e comecei a pensar na pesca do Bacalhau porque os bacalhoeiros eram conhecidos por super-homens. O meu pai através da Capitania conseguiu chegar à fala com João Respeito que conseguiu meter-me na Escola de Pesca em Pedrouços, Lisboa. Tinha 15 anos e por lá estive 9 meses, fiquei apto a ir de Moço para o Bacalhau. Embarquei rumo à Groenlândia no navio ‘Lutador’, onde havia muitos bacalhoeiros poveiros que nos primeiros tempos metiam o olho em mim e ajudavam no preciso. Adaptei-me bem e fui de Moço apenas um ano, depois fui de ‘Verde’. Na primeira quinzena, fui acompanhado por um pescador experiente, agradeci-lhe e comecei a enfrentar o mar e a pesca sozinho, tinha 17 anos”, recorda Mestre Agonia.

A vela e os remos continuaram a ser a força de propulsão: “Pescávamos nuns pequenos dóris com velas talhadas pelos pescadores mais antigos, que tinham um molde para se cortar o pano. Quem ensinava a entralhar a vela tinha gosto que a gente aprendesse, e rapidamente começávamos a ter autonomia na pesca. Na Groenlândia era sempre dia até vir embora. Às 4 da manhã arreavam-se os dóris e ia-se para o mar. Quando tínhamos peixe suficiente, vinha-se descarregar a bordo e voltava-se à pesca. Às 4 da tarde, cheio, meio ou vazio recolhiam todos ao navio que içava uma bandeira a avisar. A minha média de pescado era sempre acima de 200 quintais. Entre 60 bacalhoeiros consegui ser o segundo melhor. Pescávamos, depois tínhamos que escalar e salgar o Bacalhau. Havia o escalador ou o salgador, cada um tinha a sua especialidade, mas tínhamos que ajudar e no final de 8 horas ficava-se todo besuntado de vísceras e gorduras, era preciso a gente lavar-se minimamente. Davam-nos uma caneca de meio litro de água. Juntava-me a outro pescador e com uma caneca lavava-se as mãos e com a outra a cara. O navio não tinha condições para dar mais água. Na realidade, tomava banho em casa antes de sair para o Bacalhau e seis meses depois chegava a casa e tomava banho outra vez”.
 
Os navios da pesca do Bacalhau saíam em Abril e regressavam em Setembro, lembra Agonia Areias: “Depois da bênção dos bacalhoeiros, saíamos de Lisboa e no regresso entrava-se em Leixões. Para se ficar livre da tropa tínhamos que dar 8 viagens ao Bacalhau, e eu com 21 anos já tinha feito seis, mas como o meu sogro acenou-me de um barco em Moçambique, aproveitei a oportunidade e deixei os mares gelados da Groenlândia. Tive que me sujeitar e ir à inspecção. Alguém me indicou um barbeiro na Poça da Barca que me cortou a barba e estragou-me a cara toda. Na inspecção em Vila Franca de Xira, perguntaram-me há quanto tempo tinha a cara naquele estado. Assustei-os e fiquei inapto para o serviço militar. Em outubro parti para a Beira, em Moçambique onde andei a pescar a muitas milhas da costa, cerca de 4 anos”.

O regresso à Póvoa trouxe um pescador mais maduro e com outras ambições: “Cheguei em Outubro de 1963, o meu pai que já tinha uma idade avançada governava o ‘Rozeca’, uma embarcação que pertencia ao proprietário da Loja do Sol. Algum tempo depois, o Sr. Duarte ofereceu-me 20 contos (100 euros) para eu ficar ao leme da embarcação. Trabalhei uns anitos até ser vendida. Depois, fui mestre do barco ‘Frei Gonçalo’, de uma pessoa de Famalicão. Alguns anos depois, com algum dinheiro que tinha juntado, outro emprestado, mandei construir o ‘Mares do Senhor’. Pescava tudo o que viesse à rede, principalmente muita chaputa na ilha da Berlenga, para vender aos espanhóis. Se houvesse condições fazia-se o transbordo do peixe no mar, passavam-me algumas pesetas e vínhamos embora para terra. Mais tarde, comprei o ‘Restinga’ a um senhor que andava à sardinha e começou a desfazer-se das suas embarcações. Rebaptizei-o de ‘Cacilda Manuela’ nome da minha primeira mulher. Adaptei o barco para o trol, cheguei a ter seis gamelas para cada pescador fazer a sua função. Recolhia uma quantidade razoável de anzois e a pesca era rentável”.

O mar é um paiol de aflições: “Para ganhar alguns tostões é preciso arriscar. Tive sorte, nunca fui muito achacado por aflições e nunca tive nada que me tivesse dito - vê se páras por aí. Recordo uma passagem no Bacalhau. Os dóris são um bocadinho traiçoeiros, caí e mergulhei na água gelada e vim acima, como o dóri estava perto de mim consegui agarrar-me. Por sorte, alguém por perto viu e levou-me para o navio. Se assim não fosse teria morrido regelado”.

Três Décadas ao Leme da Lancha Poveira do Alto

“Eu fiz-me sócio do Clube Naval Povoense pelo convívio que proporcionava entre os pescadores. Como ficava dentro do porto de pesca, sempre que ia até lá jogar à sueca, visitava a Lancha em construção e a ganhar formas. O mesmo fazia o tio Antoninho que acabou por ser o mestre simbólico do bota-abaixo. Entre muitas das conversas com o Manuel Lopes, que fazia crescer as pessoas, surgiu o convite para dar continuidade ao leme. No dia do bota-abaixo era tanto entusiasmo que fiquei em terra e tiveram que vir buscar-me. Ainda no mar, o mestre Antoninho passou-me o leme e nunca mais o larguei. O Ala-arriba da Lancha foi feito ao Sul”.

Nos primeiros anos a Lancha era mesmo antiga, não tinha ainda motor de apoio, só remos e vela. Perdia-se o vento e remava-se às vezes com a imaginação: “Certo ano, fomos convidados a levar a lancha por mar até Esposende. O Manuel Lopes perguntou-me quanto tempo era de viagem - Se tivermos vento, em pouco mais de uma hora estamos lá, sem vento a coisa complica-se. A tripulação entusiasmada respondeu que se fosse preciso remava, e eu disse ao Lopes que com seis remos de cada lado e vontade de remar, três ou quatro horas deveriam chegar. Os profissionais da pesca faziam 18 milhas a remar, em três horas”.

E Mestre Agonia Areias recorda: “Não estava vento e remámos até fora da barra um bocadinho. Quase todos se queixaram que lhes doía os braços e meteram os remos dentro. Ou seja, à hora que devíamos entrar em Esposende estávamos em Vila do Conde, a maré foi-nos levando. Era uma hora da tarde quando veio um bocadinho de vento, metemos a vela em cima, precisamente na hora em que chegou o salva-vidas para nos dar reboque. Chegámos quase às quatro horas a Esposende.

E continua: “Nos primeiros seis anos a ‘Fé em Deus’ não tinha motor e sem vento acabávamos por ser rebocados. O Manuel Lopes percebeu que para fazermos longas viagens precisávamos de autonomia. Quando fomos à Expo98 levamos um motor pequeno de cerca de 30 cavalos, já evitava da gente remar. Depois, meteu-se um motor melhor que anos depois queimou a caminho de Cambados. Acabámos por meter outro que ainda resiste”.

Nos últimos dois anos, a pandemia não deixou a Fé em Deus navegar: “Depois de tantos anos a fazer saídas ao mar, a participar em encontros de Embarcações Tradicionais, esta paralisação veio criar um vazio entre nós. Senti muito a falta das viagens, do contacto com os tripulantes, de conhecer novas pessoas num ambiente sadio. Faz-me falta o exercício que se fazia a bordo, o entusiasmo. Ficávamos todos mais vivos. Quando era pequeno ia a bordo das lanchas e dizia que tinha umas panas (bancos) muito largas, mas com o tempo saltávamos ou caminhávamos entre elas sem dificuldade. Hoje, acho que alguém alargou o espaço entre as panas. Para retomar as viagens é preciso criar um novo entusiasmo”.

Para o Mestre Agonia Areias, existem momentos na vida de que nos devemos orgulhar: “Quando abracei ser o mestre da Lancha Poveira ‘Fé em Deus’, fi-lo com muito amor e um bocadinho de vaidade. As lanchas eram o orgulho dos homens do mar. Sou como os outros, mas enquanto vou ao leme creio sempre que o faço melhor. Quando dobrei o cabo Finisterra, parece que tinha dobrado o Céu. Nunca ninguém o tinha feito numa Lancha Poveira. Fomos a quase todas as Rias galegas, a Santiago de Compostela, a Setúbal, a Brest, à Expo98, foram muitas horas a navegar, muitos portos a atracar. É um motivo de orgulho para quem governa o leme e para toda a tripulação. O barco é seguro e cabe ao mestre dar essa segurança. Espero que a Lancha continue a navegar por muitos anos”.

E conclui: “A Lancha Poveira é parte da família, da minha vida. Tenho a ‘Fé em Deus’ como um pedaço de mim”.
 
Quanto a mim, gosto tanto desta ideia de mar que me parece absurdo naufragar.

José Peixoto 

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