Voz da Póvoa
 
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A Requalificação de Uma Narrativa de Memória

A Requalificação de Uma Narrativa de Memória

Pessoas | 21 Agosto 2021

Quem nos abre o coração merece sempre admiração. Somos a sensibilidade dos dias. Existimos primeiro fora de nós e depois dentro. Quem nos conta só quer perceber o inverso de nós, como se fosse possível desnascer, ser pai do filho, ser avô, bisavô, antes e depois, pertencer sempre. Partimos agora, à procura de uma nova coreografia, capaz de nos enternecer ou apenas pela vontade de escutar o tempo do outro.

Armando Rocha Marques nasceu a 15 de Abril de 1929, na Rua António Graça, Póvoa de Varzim. Iniciou funções no Município a 15 de Janeiro de 1953, teve uma curta passagem pela Câmara de Vila do Conde (1963-1966), foi promotor e chefe dos serviços de turismo e responsável pelo acompanhamento e divulgação do Rancho Folclórico Poveiro, tendo-se aposentado em Junho de 1987. A maior distinção e honraria, recebeu em 2016, ao ser agraciado pela Câmara Municipal, com a Medalha de Reconhecimento Poveiro – grau Prata. Em Janeiro de 2018, recebeu o Brasão do Concelho. Entre outras actividades, colaborou com a imprensa local e regional, e é autor do livro “Crónicas Poveiras: o passado no presente”. É casado há 69 anos com Maria Leopoldina Marques, tem duas filhas, dois netos e cinco bisnetos.

“Fui concebido em Manaus, mas quatro meses depois a minha mãe regressou à Póvoa e aqui nasci. Tinha 5 anos e caí do primeiro andar à rua Tenente Valadim, a mão de Deus amparou-me e não me aconteceu nada. Era em terra batida, mas depois de ficar pavimentada elevou-se 60 centímetros, as portas passaram a ter uns degraus para o interior das casas. Como os Invernos eram rigorosos, havia muitas inundações e frente às portas de entrada aplicava-se na parede uma moldura de cerca de um metro, onde se encaixavam umas tábuas vedadas com sebo para impedir a água de entrar. O largo do Castelo era o meu reino e dos cachopos da altura. Era lá que aparcavam os Circos. Eu sentia-me dono do Castelo, era conhecido e estimado por todos os Guardas-fiscais. Com outros cachopos trepava pelas paredes acima e invadíamos o Castelo. Das alturas, ficávamos a olhar as centenas de barcos no sequeiro frente ao Casino. Tudo se foi, tudo mudou, mas a Póvoa também não podia parar no tempo”, reconhece Armando Marques.
 
A vila de então era procurada pelos banhistas e gente que gostava de jogos de azar: “Entre Junho e Setembro, a Póvoa recebia a elite de industriais e comerciantes das vilas e cidades vizinhas, entre funcionários bem pagos. Depois das colheitas e das vindimas, em Outubro, vinham as gentes das nossas aldeias, ‘os ceboleiros’ passar uns dias à Póvoa, aos banhos quentes. Na altura, o Café Chinês era uma espécie de casino clandestino, mas entre 1929 e 1933, funcionou ali mesmo o jogo concessionado. Em 1934 foi inaugurado o edifício do actual Casino e anos depois, o Café Chinês acabou demolido para dar lugar ao Póvoa Cine. É evidente que sempre houve jogo clandestino, a Associação Povoense, na rua dos Cafés, tinha gente endinheirada que vinha do Porto, Guimarães e outras cidades, ali jogar fortunas”.

A realidade para Armando Marques é que a Póvoa ganhou fama com os banhos quentes e com o Jogo: “Gerou-se uma certa disciplina e entendimento entre a Câmara, o Turismo e a Capitania, redundando na harmonia que ainda se mantém. Não é por acaso que a Câmara Municipal tem vindo a homenagear e a reconhecer os comandantes da Capitania pela forma como tratam as praias da Póvoa. Com orgulho digo, que durante a minha longa passagem pelo Turismo, contribui muito para esse entendimento. Fiz amizade com todos os capitães do Porto de Pesca. Um deles foi para Macau e escrevia-me todos os quinze dias”.

Atravessamos a Memória e Encontramos a História

“Havia um posto de turismo no Passeio Alegre que depois passou para a casa do David Alves, durante sete anos utilizei o gabinete que foi dele. Quando a casa e os jardins deram lugar a um edifico de sete andares na Avenida Mouzinho de Albuquerque, ocupámos umas lojas onde é hoje a Associação de Futebol Popular e a sede do Rancho Folclórico Poveiro. Daí o posto de turismo foi para um dos Torreões do Mercado. A casa do David Alves podia ter sido adquirida pela Câmara com o apoio da Direcção Geral do Turismo, que chegou a fazer uma proposta de compra no valor de 900 contos (4.500€), mas não aproveitou. Quando recebíamos os turistas ingleses na casa, oferecíamos uma bebida e uma exibição do Rancho Poveiro, mas eles demoravam-se a admirar e a fotografar o jardim. Esse posto de turismo criou fama internacional e foi pena ter-se perdido um jardim a 50 metros da praia. Entrava-se pela Avenida Mouzinho e a casa ficava frente ao largo, hoje, David Alves”.

Armando Marques, um ano depois de entrar ao serviço da Câmara Municipal foi convidado para acompanhar e ser o interlocutor do Rancho Poveiro, fê-lo pela vida fora: “A primeira vez, fui a Fafe, onde era pároco o monsenhor Manuel Amorim. Foi ele que pediu o Rancho à Câmara e que fosse alguém com bom trato. O Rancho foi fundado em 24 de Junho de 1936, pelo Santos Graça, meu amigo e mestre, para responder a um convite da comissão de festas do S. João de Braga, onde haveria um desfile de trajes tradicionais. Recordo que sempre que levávamos o Rancho num raio de 50 quilómetros, o Santos Graça ia com o seu motorista ver a actuação, tendo subido várias vezes ao palco a meu pedido, não só por ser o fundador, mas para justificar a Camisola Poveira que era contestada por toda a gente, por ser muito bonita. Diziam que era uma fantasia porque a classe piscatória não tinha trajes tão bonitos. A realidade é que há pescadores no século XIX com a Camisola Poveira vestida”.

Como promover a Póvoa foi sempre o mote para inovar, daí a criação do Folkvarzino: “É a minha coroa de glória, a organização do festival foi considerada a melhor do país. Ano sim, ano não, entre 1979 e 1987 subiam ao palco, ao lado do Casino, 23 ranchos folclóricos de todo o país, com o de Rates que foi apadrinhado na sua fundação pelo Rancho Poveiro. Tinha que arranjar 23 amigos e cada um se responsabilizava por levar o rancho que lhe coube a jantar no quartel. Na primeira edição, o evento mereceu cobertura da RTP. Mais tarde, com o objectivo de criar uma federação de folclore, fui convidado para ser presidente da comissão moderadora e aceitei. Fizemos três reuniões preparatórias em Gaia, Vila do Conde e Póvoa de Varzim. Uma vez criada, fui o primeiro presidente da Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Folclore. O meu primeiro acto foi mudar o nome para Federação de Folclore Português, isto para não se confundir com Federação Portuguesa de Futebol. A sede era em Gaia. Estive no cargo três anos”.
 
As festas de São Pedro tiveram início em 1962. Armando Marques recorda os primeiros passos: “O presidente da Câmara, major António José Mota pôs em acta que era preciso criar uma atracção que chamasse as pessoas à Póvoa e por sua nomeação incumbiu-me de pensar no assunto. Um dia, pedi para ser recebido e propus que se fizesse a festa de Santo António, já festejado no Cidral no bairro da Matriz e no calendário é a primeira festa de Junho. Concordou, mas no dia seguinte chamou-me e disse-me que receava que as pessoas associassem a escolha do santo ao seu nome próprio, António. Como estávamos rodeados de S. João por todo o lado, Vila do Conde, Braga e Porto, vingou o S. Pedro. Pelas mãos de Rodgério Viana, José de Azevedo com as rusgas, criou-se uma comissão de festas. No primeiro ano, as festas tiveram as rusgas dos bairros da Matriz, Norte e Sul. Na altura, eu era responsável pela promoção. Desde Setembro de 1958, escrevia no Ala Arriba, depois tornei-me correspondente do Comércio do Porto, Diário Popular, do El Pueblo Gallego, entre outros. Durante 21 anos a programação e execução do S. Pedro passou por mim e pelo Turismo. Por falar em escrita, devo ser o autor com maior número de actas feitas à mão, Câmara, Beneficente, Bombeiros, Familiar, Filantrópica, sempre com uma letra bonita e legível”.

A Póvoa de Varzim Fez-se Cidade e Inovou em Eventos

O Rali de Portugal veio 12 anos consecutivos à Póvoa de Varzim, mas Armando Marques lembra também outras iniciativas: “Braga e Viana do Castelo não quiseram, era na época do PREC e tiveram medo. Eu entendi que uma coisa não tinha a ver com a outra, o rali arrastava multidões e confirmou-se ser uma das grandes promoções que tivemos da Póvoa. Entre outros acontecimentos importantes, destaco que após o primeiro congresso da Associação Portuguesa de Agentes de Viagem e Turismo, ter acontecido em Angola, o segundo foi na Póvoa, penso que em 1976. O terceiro congresso Nacional de Turismo foi também na nossa cidade. Outra iniciativa promocional e que trouxe imensa gente, foi o corso de Carnaval. Fui a Ovar ver o carnaval com três amigos para tirar algumas ilações. O primeiro desfile desceu do Hospital pela Avenida Mouzinho de Albuquerque até à praia. Durante 3 ou 4 anos foi gratuito, mas depois passou a ser pago e desfilava no Passeio Alegre. Chegámos a ter doze carros alegóricos a valorizar o corso carnavalesco. Num Carnaval venderam-se 15 mil bilhetes e entreguei 1100 contos (5.500€) de receita à Câmara. Depois por situações que me ultrapassam, decidiram acabar com o carnaval, um trabalho de 9 anos”.

E recorda: “Durante dois anos, vinham pessoas ao engano à procura do Carnaval da Póvoa. Para mim foi um desastre. Vinha sempre uma grande atracção do Brasil. Era a Neuza Amaral que trazia os artistas. Como nós organizávamos o carnaval ao domingo e Viana do Castela à terça-feira, ainda os apoiávamos com os actores e actrizes. Criaram-se umas 3 ou 4 escolas de Samba. Mesmo depois de acabar o carnaval na Póvoa iam para outros carnavais. Ou seja, houve escolas poveiras que ainda duraram mais alguns anos porque passaram a participar em corsos de outras cidades. Deu muito trabalho e acabou tristemente”.

Outra memória com grande sucesso para Armando Marques, foi a participação da Póvoa nos Jogos sem Barreiras: “Fomos a única cidade onde os jogos eram transmitidos em directo pela RTP, os responsáveis pela transmissão diziam que éramos os únicos que cumpriam os horários. Nos Jogos sem Barreiras concorriam equipas de nove municípios e todos os anos havia 8 organizações em cidades diferentes. Ganhámos várias vezes, o que nos levou, por convite, a participar nos Jogos sem Fronteiras, em Antibes, onde integramos um grupo de 18 países”.

A Póvoa desde sempre é uma cidade onde a prática desportiva abrange um sem número de modalidades, mas talvez não saiba que se realizaram provas de hipismo onde é hoje, o campo de futebol de Aguçadoura: “Organizei concursos em dois anos consecutivos. Tinha um bom relacionamento com o cavaleiro internacional José Soares da Costa, que me incentivou a fazer um concurso de hipismo olímpico na Póvoa. A Câmara alisou os terrenos, que serviram mais tarde para fazer ali o campo de futebol. O Baltasar era o presidente da Junta e deu-me uma grande ajuda na altura. Também o pai do Edgar Pinho, presidente do Varzim, na altura era o dono de umas instalações cobertas e cedeu-mas para guardar cerca de 90 cavalos. Pusemos uns tapetes de madeira para facilitar a entrada no hipódromo, mas as senhoras iam todas de sapato de tacão alto e queixavam-se. Foi um sucesso enorme. Esgotou nos dois anos que organizámos e tivemos uma forte cobertura pela comunicação social”.

Nem sempre o sucesso de um evento é entendido pela positiva: “Organizei um Festival da Cerveja que teve o apoio do Casino e chamou gente à Póvoa de todo o lado. Consumiu-se tanta cerveja que até recebi uma visita de dois engenheiros da UNICER a felicitar-me, porém outros desancaram-me forte por estar a alimentar borrachos. Foi um festival nunca visto, mas não se repetiu. Antigamente, havia muita colaboração e um esforço grande para fazer as coisas acontecer. Fizeram-se coisas que nunca mais se fazem, os tempos e as oportunidades são outras”.

Um Dia de Cada Vez Tantas Vezes Quanto Possível

“Aposentei-me em Junho de 1987 e em Dezembro havia eleições autárquicas. O primeiro a abordar-me foi a APU, uma coligação comunista, com a garantia de que seria o vereador do turismo. Seguiu-se uma comitiva do PS, pessoas minhas conhecidas e depois o PSD. Só não veio falar comigo o CDS. Um dia, Campos Cunha disse-me que não veio à minha porta porque sabia que ia ouvir um não. Eu saí do Turismo da Póvoa, mas já era sócio da Rondatur e não queria envolver-me na política. Ofereceram-me a quota da agência de viagens para lá trabalhar. Tinha obrigações”.

Quanto às honrarias recebidas, Armando Marques diz que, “nunca andei atrás de medalhas, mas sei agradecer. Pelo prestígio é a medalha da Câmara, mas o meu ego funcionou melhor nas palavras do Rodgério Viana, quando fui homenageado pela Junta de Freguesia da Póvoa. Foi uma homenagem em meu nome”.

O tempo agora é de gozar o feito, reviver memórias e revisitar amigos, mas a pandemia foi recebida, “com as dúvidas que toda a gente teve. Vivi no grupo das pessoas assustadas porque tenho um pulmão que não respira e a idade não ajuda. Tive muito medo e fui das primeiras pessoas a tomar as duas doses da vacina. Há dois ou três dias, disse à minha mulher - as filhas chegam e já me beijam, mas tu ainda continuas com a máscara. A partir daí começou a beijar-me como era natural na nossa relação de marido e mulher. Todos os almoços de convívio foram para o galheiro. Sou gasómetro, estudei na antiga fábrica do gás. Ainda juntei no ano antes da Pandemia, 44 antigos alunos. Perdeu-se o ritmo. Nos gasómetros estamos todos na casa dos 90, as senhoras estão quase todas, os maridos já partiram”.

Armando Marques não viveu só de eventos e promoções turísticas, esteve também muito ligado ao associativismo: “Fui secretário e/ou presidente da Assembleia Geral de várias associações, mas isso não me comove. O que na realidade sobra é alguma mágoa por não poder acompanhar o desenvolvimento da minha Póvoa”.

 E conclui com um sorriso que nunca soube disfarçar: “Na vida, temos que saber aproveitar o facto de não sabermos quando nos vamos desta, mas tenho boas razões para estar de consciência tranquila”.  

Por: José Peixoto

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