Voz da Póvoa
 
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A Memória de Uma Aventura do Pensamento

A Memória de Uma Aventura do Pensamento

Pessoas | 11 Maio 2024

 

Ninguém nos oferece o que somos ‘o operário em construção’. Conhecemos a terra arada, edificada, o vento, o sol, a chuva, o rio, as margens que o comprimem, o mar a pular, a avançar, quem somos afinal? Uma aventura do pensamento.

Joaquim António Maria Moreira Cancela nasceu no dia 24 de Maio de 1931, um domingo, na freguesia de Rates, Póvoa de Varzim. Licenciado em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: “Nesse tempo, Portugal ia de Minho a Timor, Macau e passava por Goa, Damão, Dio, Moçambique, Angola, Guiné, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Madeira e Açores. Para esse território imenso havia só duas faculdades de direito, a de Coimbra que vinha de tempos imemoriais e a de Lisboa que começou a funcionar em 1920. No meu tempo, a Faculdade de Direito de Coimbra tinha seis salas, naquilo que se chamava os gerais, e o curso cinco anos. A sala do 5º ano era a mais pequena. O 1º ano tinha duas salas porque aí se fazia a selecção. Chegavam ao fim do curso cerca de 40 a 50 indivíduos. Em Lisboa era mais ou menos a mesma coisa. O curso dava para ser ministro, presidente do concelho de ministros, das administrações todas, governadores civis, juízes, advogados, notários, conservadores em todo o sítio do território, desde Timor até Mondim de Basto que foi onde comecei a minha vida profissional”.

Nascer e crescer numa época onde quase tudo faltava acabou por atear a construção de uma consciência política? “Há uma consciência que nos cerca, desde sempre. Não quero que isto seja um autoelogio, mas lembro-me de ficar impressionado com certas cenas que assisti. Em Rates, nesse recuado tempo ouvíamos a Ronca da Póvoa (quando estava nevoeiro no mar), o comboio do Porto, quando o vento estava do Sul. E ouvia-se mais, ouvia-se o bater do mar. Aí, sabíamos que em períodos de muita chuva e de temporais, apareciam-nos a pedir, uns homens descalços com uns oleados, uma cesta em cada braço, rezando padre-nossos, implorando que lhes desse broa ou qualquer outra coisa de alimento. Isso ficou-me gravado no meu tempo de criança. E quando vim para a Póvoa, com os meus 11 ou 12 anos, para o Liceu Eça de Queirós, na antiga Fábrica do Gás, morava na rua Paulo Barreto em casa de um tio meu, na esquina com a rua das Lavadeiras, havia outro espectáculo que me impressionava muito, que era o Penhor das senhoras Bragas. Assisti ao desespero das pessoas quando não conseguiam resgatar os poucos bens que tinham penhorado para receber algum dinheiro porque o mar não permitia que se fosse à pesca, nem ter trabalho. E os gritos, às vezes, lancinantes das pessoas que viam que os parcos objectos que tinham ali entregues de penhor, ir para outras mãos, isso impressionou-me muito”.

Antes ainda de frequentar o Liceu já visitava a Póvoa de Varzim, a praia do pescado: “Lembro-me de, nos meus 7 ou 8 anos, vir de Rates com o carro de bois comprar sardinha. Guardo na memória uma tarde de Novembro de sol esplendoroso, as lanchas a chegar, a descarga da sardinha no areal. A vozearia dos pregões das mulheres, as pessoas a correr em direcção aos barcos que chegavam para tentar conseguir comprar. O preço oscilava porque era o mercado a funcionar, com o fim do dia e o princípio da noite o preço baixava. A gente esperava porque uns tinham interesse em vender e outros em comprar. Nós fizemos o mesmo, comprámos, carregámos e levámos a sardinha para casa, para a salga. Tempos passados”.

Consciências Ideológicas no Combate ao Pensamento Único

“Temos sempre que ter o máximo possível de informação em relação ao que se passa à nossa volta, não só dos adversários. O processo é dialético – há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não – e portanto, há-de haver sempre um contraditório. E a primeira coisa é conhecer bem o adversário, melhor que aqueles que estão ao nosso lado, que em princípio não nos ‘apunhalam’, os outros sim. A função do adversário é vencer o outro, mas precisamos conhecer as regras”.

Nunca viveu na clandestinidade mas conheceu vários combatentes do regime salazarista: “Quando fui para o Porto para o Liceu Alexandre Herculano, no ramo de letras em Direito, éramos apenas 10 alunos, três da Póvoa, recordo o professor Óscar Lopes, conhecido opositor ao regime. O Alfredo Calheiros, outro revolucionário, era um dos alunos mais brilhantes, que estava sempre no quadro de honra, o pai era poveiro. O Ângelo Veloso também lá estava, o José Campos, eram jovens que participaram e pertenciam a um grupo juvenil. Sabíamos que por trás estava o Partido Comunista, única força organizada que existia. Não havia confrontos físicos, mas havia uns debates mais acalorados, sempre com a vigilância de alguns professores. Aí a gente começa a ter uma consciência política”.

E acrescenta: “Agora que estou em período de rememoração, recordo a primeira noite que passei no Porto. O meu pai levou-me até à Trindade e eu fui para a rua dos Caldeireiros, onde me instalei. De chave na mão, um miúdo de 16 anos, com a liberdade toda de se encontrar na mocidade aberta, chego à rua dos Loios, olho para cima para a rua dos Clérigos, vejo um senhor a cavalo com uma espada ao ombro, e atrás um grupo de cavaleiros que ocupavam a rua toda, a descer. Logo a miudagem apareceu a ver o que acontecia. Dirigiram-se à estação de São Bento. A seguir vinha a polícia com a arma atravessada ao peito e os comandantes à frente. A cavalaria começa a varrer aquele espaço todo frente à estação, a polícia forma um cordão para que ninguém entrasse ali. Encosto-me à frente da igreja dos Congregados juntamente com uns jovens da minha idade, e surge uma senhora e dois senhores saindo da estação. Começa um certo murmúrio – é por isto que temos todo este aparato policial – de repente há um homem que se destaca ao entregar à senhora um ramo de flores, quando desce, leva logo umas espadeiradas, caiu e ficou no chão, e começam os gritos: liberdade, liberdade. Não percebíamos o que se estava a passar. Seguiram-se umas cargas de cavalaria, o normal em tempos de repressão e servidão. Tive que sair dali e procurar a rua onde morava”.

Quem eram, afinal, as três pessoas que surgiram da estação de São Bento? “Tempos depois, aqui, no Póvoa-Cine encontro a senhora e os dois senhores. A senhora era a Engenheira Virgínia Moura e o seu companheiro o Arquitecto Lobão Vital, e o professor Ruy Luís Gomes. Essas três criaturas vieram fazer um comício no Póvoa-Cine. Aí, eu já participava dessas coisas. Nesse comício a Virgínia Moura revelou-me que tinha também estudado na Póvoa de Varzim, deu-me um grande abraço e o Luís Gomes também. São estas cenas e outros episódios que nos faziam tomar consciência do que se passava. Depois, começámos a pensar pela nossa cabeça e a ver as injustiças que se praticavam porque o que interessa é o que se é e não o que querem que sejamos”.

Joaquim Cancela não presenciou a visita do General Humberto Delgado à Póvoa, mas assistiu à sua chegada a Coimbra: “Foi um momento absolutamente histórico. Naquele instante, passámos por todos os estados da compulsão, da alegria, da revolta, da esperança, apenas por ver uma pessoa que foi capaz de galvanizar toda aquela gente que apinhava aquele Largo. As pessoas quase que não se podiam mover”.

A história conta-nos que essas eleições presidenciais de 1958 terão sido manipuladas: “posso dizer o seguinte a respeito disso. Eu estava numa república, tinha um colega que era de Aveiro e estava empenhado nessas eleições presidenciais. Ele tinha os pais na América, dinheiro e carro, mas nunca quis sair do país. Para não dar nas vistas foi de comboio até Aveiro. Mal desembarcou, apareceram dois tipos e – acompanhe-nos se faz favor – Na verdade, foi presidir a uma mesa de eleição no Governo Civil. Quando acabou a eleição disseram que podia ir embora, mas não o deixaram votar”.

Como Acordar para o 25 de Abril na Póvoa de Varzim

“Acordou tranquilamente. As pessoas não reagiram logo. No primeiro dia, foi o Manuel Lopes que andou por aí a anunciar a boa nova. Depois as pessoas aos poucos começaram a perceber o que se tinha passado, a ter consciência da nova realidade e a actuar em função da responsabilidade que cada um tinha perante a sociedade. Dias depois, uma multidão invadiu a Praça do Almada a celebrar Abril. Eu próprio fui apanhado de surpresa pela revolução. Também não tinha nenhuma actividade política activa, nunca quis estar em bicos de pés em sítio nenhum. Levei sempre uma vida calma e tranquila, mas reconheço que tive sorte”.

No país do protesto em surdina como auscultar o ruído partidário e preparar eleições livres? “Eu nunca fui filiado no PCP, nem antes nem depois de Abril. Fui convidado antes e depois, mas nunca aceitei, fui sempre amigo e colaborante com pessoas do Partido Comunista. Eu e outros poveiros éramos de um movimento democrático MDP/CDE que ganhou umas eleições em Aver-o-Mar, uma freguesia muito especial onde os vermelhos não tinham nada a ver com os comunistas, era precisamente ao contrário. Quem lá fosse pelas cores tinha o caldo entornado. Conhecia muito bem o meio porque os cartórios tinham muito movimento e as pessoas chegavam lá para se aconselhar sobre imensas coisas. Também havia uma ligação muito íntima entre o cartório e as pessoas que o frequentavam. Não havia advogados na Póvoa, só o Afonso Fernando. Hoje há imensos. Naturalmente que se trata de progresso. São alterações que se fazem na vida e sempre para melhor”.

E recorda: “Fui eu quem constituiu a primeira Comissão Eleitoral para elaborar e organizar os cadernos eleitorais, encarregaram-me disso. Em princípio deveria ter um delegado de todos os partidos, mas apareci eu e um Guarda-fiscal reformado que era do Partido Socialista. E quem participou na Comissão Política foi o Dr. Alfredo Graça. Éramos amigos e companheiros desde o primeiro ano de Liceu e mantivemos sempre essa ligação, mas eu não fiz parte dessa comissão. O Alfredo era uma pessoa muito formal, mas muito ligado a movimentos culturais, era um homem íntegro, de um só parecer, um só rosto e de uma só fé. Era médico, tinha uma actividade privada sem outros recursos, se não estivesse no consultório não ganhava, mas sacrificou-se e aceitou. A Comissão Administrativa só foi instalada em Outubro de 1974. O Dr. Arriscado Amorim terminou o seu mandato a 25 de abril de 1974. Quem ficou na Câmara Municipal foi o seu adjunto Dr. José Trovão que se manteve até à tomada de posse da Comissão Administrativa. Transição mais pacífica do que esta, não conheço. As coisas não eram estremadas, as pessoas conversavam, havia grande indecisão e o Alfredo Graça disponibilizou-se”.

Com um país intranquilo e a viver um complicado momento revolucionário, surge o chamado Verão Quente com grupos extremistas a atacar à bomba sedes do PCP e de outros partidos de extrema-esquerda. Por tabela a Cooperativa António Sérgio, com sede na avenida Mouzinho de Albuquerque, fundada por Manuel Lopes, também sofreu um atentado: “Fui eu que fiz os estatutos e a escritura da Cooperativa. Não posso precisar a data, mas penso que deve ter sido criada em 1973 e teve pouca vida porque dois ou três anos depois, acabou premiada com uma bomba e eu também recebi o mesmo prémio. Sinto-me muito honrado por sentir que era uma pessoa importante, não tinha essa consciência. Tinha um amigo e condiscípulo que era da judiciária e que foi escolhido para presidir à secção que tratava desses crimes. Conversávamos muitas vezes, quer em minha casa quer em casa dele, as nossas mulheres também tinham sido condiscípulas na faculdade de letras, e eu estava muito a par dos movimentos ditos terroristas. Havia um senhor que vivia aqui na póvoa, não me recordo do nome, que era também da polícia judiciária e que estava nessa brigada e também por vezes nos encontrávamos e conversávamos. Na verdade, eu sabia que qualquer dia aconteceria o que aconteceu, uma bomba e um susto”.

Honrar o Pelouro Promovendo a Cultura pela Primeira Vez

“Como candidato à Câmara fui sempre pela coligação que integrava o Partido Comunista e o MDP/CDE que tinha a sede na rua Cidade do Porto numa casa que tinha sido do Dr. Vieira Trocado. Integrei as listas em várias eleições, quer para a Assembleia Municipal ou para a Câmara Municipal. Cheguei a ser eleito numas eleições, Membro da Assembleia e o Dr. José Reina foi eleito Vereador. Quando o ‘padre’ Manuel Vaz saiu, eu concorri à Câmara Municipal, venceu o Dr. Macedo Vieira e eu fui eleito Vereador. Nessas eleições de 1993, o PS não elegeu nenhum Vereador, eram três do CDS, três do PSD e eu. Para qualquer um dos lados fazia maioria. Houve uma gestão de interesses e assumi o pelouro da Cultura”.

A cultura na cidade não era propriamente um exemplo a seguir. Qual foi a estratégia que congeminou para ter sucesso? “Foi muito simples. Era minha consciência que não voltaria mais à Câmara e sabia que a cultura na Póvoa era um marasmo. De maneira que fiz um tratamento de choque. Trouxemos ao antigo Garrett muitos e bons espectáculos, entre outros o José Mário Branco com Amélia Muge e João Afonso, O Mário Viegas com o espectáculo ‘Europa não Portugal nunca’. Tivemos o Ballet da Olga Roriz por duas vezes no Garrett, a última foi um ensaio geral que ela pediu para fazer na Póvoa, com público e sem custos. No Pelouro da Cultura tinha uma equipa muito boa. Apenas um homem e o resto senhoras, todas com muita capacidade de trabalho. De maneira que eu estava no Cartório e a Manuela Ribeiro, minha assessora, entrava em contacto todos os dias comigo e íamos resolvendo as coisas. Recordo que, não deixei de ser Notário no terceiro Cartório do Porto – zona da Boavista. Nesse mandato, foi também criado o Varazim Teatro. Primeiro fizemos um contrato com o teatro Noroeste que não correu como devia, mas deixou as sementes para a criação do Varazim Teatro. A Associação Octopus que passou por um período conturbado, acabou por ser apoiada. Os protocolos que assinámos ajudaram as associações a desenvolver o seu trabalho”.

E revela a solução encontrada para o Festival de Música que tinha o futuro comprometido: “Na altura, a Sopete foi ‘assaltada’ por um grupo que quis o desmantelamento da empresa poveira e ficar apenas com o Casino. Eles patrocinavam o Festival Internacional de Música, mas a Câmara tomou conta dessa empreitada cultural. Organizámos e lançámos as sementes da continuidade. A cultura ganhou a Póvoa porque nada é estático, a vida é sempre dinâmica e eu vejo sempre as coisas em movimento. Esse movimento depende da orientação que lhe damos, mas quer queiramos quer não, este momento já passou, já não volta, é sempre para o futuro. Estamos constantemente a envelhecer, a transformarmo-nos, a desaparecer, os meus amigos, a maior parte deles já cá não estão e eu, nesta altura, tenho consciência das minhas limitações físicas e intelectuais que são muitas. Falha-me a memória, às vezes em circunstâncias muito aborrecidas, mas isso faz parte da vida. Eu nunca pensei chegar aos 93 anos, mas acho que vou lá chegar”.

Uma palavra para as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril onde podemos incluir o Dia do Trabalhador: “Mais do que celebrar temos é que cumprir. Sermos revivalistas, pensar o que era antes não nos diz nada. Temos que viver na carne, sentir, ter terror, ter medo, ter alegria, ter tristezas para a pessoa encarnar, encarnar no sentido de absorver, de ficar dentro de nós os acontecimentos, as emoções que nos geram. O que foi, está. Nós é que temos que fazer o futuro. O futuro está sempre à nossa frente e nós temos que tomar conta dele. Vamo-nos preparar, temos que fazer a cama onde nos queremos deitar. Eu faço muitas vezes a minha cama no sentido figurado e no sentido físico”. E conclui: “Tenho muito respeito pela vossa profissão e pela dedicação que vocês entregam a esta actividade, que é essencial para a formação e informação”.

 

Por: José Peixoto

Fotos: Rui Sousa

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