Voz da Póvoa
 
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A Dança como Coreografia Absoluta de um Poema

A Dança como Coreografia Absoluta de um Poema

Pessoas | 6 Maio 2023

 

A vontade seria alongar todos os tempos, os de bailarina e de coreógrafa, sabendo que o corpo é o primeiro a desistir da dança, não por vontade, mas por irremediável cansaço. Ficam os palcos, os cenários, as ideias do mundo ou a capacidade de amadurecer na árvore das interpretações das suas próprias coreografias. A arte é tão capaz de nos surpreender o inteiro da vida, que nunca nos segreda a sua finitude, alerta-nos apenas para uma possível e efémera eternidade.
 
Sara Garcia foi surpreendida com o Prémio Autores SPA 2022, na categoria da Dança – Melhor Bailarino/a, pela sua interpretação na peça "Fecundação e Alívio neste Chão Irredutível onde com Gozo me Insurjo" dos coreógrafos Hugo Calhim Cristóvão e Joana Von Mayer Trindade, companhia Nuisis Zobop.

“A Sociedade Portuguesa de Autores já tinha a categoria da Dança, mas apenas o prémio de melhor coreografia. Pela primeira vez, entregou o prémio interpretação ao melhor bailarino ou bailarina”, disse a bailarina.

Sara Manuela de Araújo Garcia nasceu em 1990 numa maternidade do Porto, mas ao colo dos pais regressou à Póvoa de Varzim onde ‘sempre’ viveu. Quando ganhou o equilíbrio para caminhar, cedo fez do chão da casa um palco, que alargou ainda muito pequenina na Filantrópica. Começou a fazer formação em ballet clássico com a professora Cristina Carvalho, que depois de Vila do Conde reinventou um espaço de dança na Póvoa. Na Gimnoarte com a professora Joana Rios e Odete Rios fez dança Jazz, contemporânea e ginástica rítmica, onde pisou vários palcos. Ainda uma adolescente foi estudar para o Conservatório, em Lisboa.

“Fiz o 11º e 12º ano. Na altura, fiquei entre dúvidas, estava naquela fase em que gostava de muita coisa, sempre fiz muitas actividades e o facto de me ter focado exclusivamente na dança, levou-me a questionar o papel das artes, se queria ou não ser artista, se era algo útil ou não para a sociedade. No fundo, eu gostava tanto e divertia-me tanto que de alguma forma sentia-me culpada porque isto para mim não era trabalho, apesar de toda a exigência”. Sara Garcia sentiu também que na escola “não houve muito acompanhamento na pós-graduação e acabei por vir tirar o curso de arquitectura na FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, mas continuei a dançar em duas escolas do Porto e a fazer espectáculos. A tese final do curso de arquitectura foi sobre teatros enquanto espaço arquitectónico. Concluída e entregue a tese, senti que estava cumprida a minha missão e decidi fazer realmente aquilo que gosto”.

A vontade ganhou força e a arquitecta bailarina iniciou-se em pequenos projectos em parceria com outros jovens no Porto, mas também a fazer as suas primeiras criações: “Tive a sorte e o apoio do Cine-Teatro Garrett, a Manuela Ribeiro sempre apadrinhou muito os meus projectos, consegui apresentar o meu primeiro trabalho de longa duração, um trabalho de grupo”.

A inquietação do palco projectou a necessidade de crescer em conhecimento e partilha: “Senti que precisava de fazer um curso que me colocasse na rede artística para conhecer pessoas e, ao mesmo tempo, me conhecerem. Fiz formação avançada em interpretação coreográfica, um curso da Companhia Instável, do Porto. Nessa altura, a minha vida profissional deu um salto, contactávamos semanalmente com coreógrafos diferentes de Norte a Sul do país e também alguns estrangeiros. Conheci muitas pessoas, processos distintos de trabalho, consegui reflectir com quem mais me identificava, quer como intérprete ou como criadora. Nesse curso fui convidada por um dos coreógrafos que estavam a leccionar para integrar um trabalho. Seguiu-se outro com o Nuno M Cardoso para o Teatro São João. Assim nasceram as viagens pela dança”.

A Dança Precisa de Público para Admirar o Instante 

Neste pequeno país onde conseguimos ser pequenos em quase tudo, como sobrevive a dança no meio de artes mais acessíveis ao ouvido, que não ao olhar? “Embora, a minha formação seja em Ballet Clássico o que faço profissionalmente é na linha do contemporâneo. Tanto o teatro como a música tem um público mais construído e que esgota muitos eventos e salas. A dança é dentro das artes performativas aquela que está menos abraçada, mas acho que no norte - em particular, o investimento que o município do Porto tem feito - o público de dança tem crescido. É verdade que num espectáculo de dança, no público encontramos muitas pessoas da área. Isso dá que pensar porque não queremos só público especializado no nosso trabalho, temos que saber como chegar ao público, quebrar as falhas de comunicação”.
 
Sara Garcia acrescenta: “O Ballet clássico porque tem uma narrativa, traz mais público, as pessoas tendem a compreender melhor e a ter maior curiosidade. Penso também que é uma questão estética, as pessoas como veem o belo, a beleza é sempre mais fácil de ser apreciada. No contemporâneo há muito aquela ideia dos desgraçados que vão para ali sofrer em palco. Cria-se esse estigma de que a dança moderna e contemporânea é só sofrimento, e não é, há também peças muito divertidas e belas. É também onde se sente um maior cruzamento disciplinar. Não há uma definição concreta a atribuir, mas parte de nós artistas e dos programadores, arranjarmos estratégias para chegar ao público. Isso é muito preciso e ainda falta construir um grande futuro para a dança”.
 
De intérprete a coreógrafa, o olhar, o sentir, tudo o que é capaz de inspirar: “Há uma série de estímulos para a criação, pode ser uma imagem, peças que nascem a partir de um quadro, de um livro, mas isso são coisas muito concretas. Quando crio, sinto que há duas formas, muitas vezes não sei se pela minha formação em arquitectura, vêm imagens de cenografia. É como se visse em primeiro lugar uma atmosfera, uma estética para a peça e normalmente o movimento vem no final. Por outro lado, são temas ou conceitos que quero abordar. A minha última peça chamava-se Schuld, uma palavra alemã que tem um duplo significado, culpa e dívida. Era um tema que me interessava na altura, essa ideia da culpa que pode ser uma coisa pessoal, mas também uma questão social, que vem da nossa educação católica, tudo o que o capitalismo nos traz a nível de produtividade, se não trabalhamos um dia, sentimo-nos culpados e em dívida para com o mundo. Foi um pouco esse caminho que quis explorar”.
 
Como se vê a bailarina Sara Garcia comandante e comandada? “Actualmente, os coreógrafos apreciam bailarinos que tenham capacidade criativa nos processos e se tornam quase criadores, podendo ser ou não identificados como tal. Uma coisa é chegarem e marcarem material coreográfico e nós executarmos e interpretarmos com as nossas emoções, outra coisa é termos tarefas de criação e estúdio e depois esse material fazer parte do trabalho. Cada vez mais, há esses requisitos e eu como professora acabo por fazer isso e sinto que ao dar aulas aprendo muito. Enquanto intérprete levo muitas ferramentas da minha experiência para as aulas. Isso contamina, acho que não conseguia ser professora sem dançar ao mesmo tempo, é isso que me alimenta, a ideia de partilha. Não sinto que nasci com aquela vocação de ser professora, mas gosto muito de partilhar com a minha alegria, o prazer pela dança e o que sei com os meus alunos”.

Como encara a possibilidade de tanto trabalhar uma peça para representar apenas uma ou duas vezes? “É frustrante. Dos trabalhos que eu mais rodei, foi uma peça de teatro, fizemos 14 vezes seguidas, semana após semana. Normalmente, na dança é muito raro isso acontecer. Geralmente é um trabalho exaustivo para se fazer uma, duas, três ou quatro apresentações. Penso que é um grande desperdício orçamental para o Estado e para todas as entidades que apoiam projectos porque acaba por se produzir muita coisa, mas que não roda o suficiente. Esse é um grande problema da dança. Fiz uma peça de dança com o Paulo Ribeiro que conseguiu rodar muito porque se trata de uma pessoa que tem um nome no mercado. Isso ajuda, mas não é usual”.

O Corpo em Palco Como Expressão de Sentimentos 

O palco é importante, mas a sala, a sua dimensão histórica para Sara Garcia pesa sempre: “é emocionante dançar em frente a um público qualquer que seja o espaço, mas num teatro tudo é diferente porque há as luzes, a plateia, tudo se torna mais dramático e emotivo e quanto mais grandioso e histórico é o teatro, há sempre aquela energia própria desses espaços, chegamos lá e sentimos as companhias que pisaram aquele palco. Claro que uma coisa é dançar para uma plateia de 500 ou mil pessoas e outra para uma plateia de 50, traz outra adrenalina. Para mim é emocionante dançar no Garrett frente a muitas pessoas conhecidas, incluindo a família, um factor que traz outra emotividade. Dançar é um gozo, mas também há uma missão, conseguir chegar às pessoas e transformar de alguma forma a vida delas por um curto período de tempo”.

O erro que acontece mesmo sem que o público se aperceba acaba sempre por inquietar: “começa por haver um nervosinho antes de entrar em palco, sinal de responsabilidade, se não houver é de preocupar. O principal medo é ter uma branca, falhar algo. Com a experiência a pessoa acaba por saber gerir essa situação. Depois cada peça é uma peça, há trabalhos em que isso possa ser mais notório e outras não. O erro nota-se mais numa peça de grupo, aí vem a frustração, mas também o treino. Se a pessoa continuar a pensar que errou, volta a errar. O tanto gostar do palco é o facto de estar no presente, com os sentidos mais apurados reagimos com maior agilidade, se a pessoa errar isso ajuda a passar à frente. No final, vem a frustração porque sei que errei, estou chateada comigo, na dúvida se alguém se apercebeu, depois há sempre a insatisfação porque os espectáculos têm esse lado muito ingrato, a pessoa prepara-se muitos meses, apresenta aquilo uma vez, e falha”.

Outros factores que podem influenciar o desempenho dos bailarinos: “Na primeira vez há sempre um nervosismo maior e a inexperiência da peça no palco, uma coisa é em estúdio outra é estar no palco, as luzes muitas vezes ofuscam o olhar, se for uma peça que tenha muitos equilíbrios, baralha. A pessoa tem que estar preparada e é preciso um tempo de adaptação. As peças também crescem e é por isso que é importante rodar muito. Uma coisa é o que o trabalho cresce até ao dia da estreia e outra é daí para a frente. Com as repetições transforma-se numa peça totalmente diferente, todos os intérpretes ficam mais seguros e acaba por haver muito menos erros. Estamos tão à vontade que errar é como se deixasse cair um guardanapo, apanhá-lo e devolve-lo”.

Para Sara Garcia, manter-se em forma é uma exigência diferente em cada trabalho: “Há peças mais exigentes fisicamente, mais atléticas, e há outras que são mais performativas, mais conceptuais, que exigem outro tipo de preparação, mais presença de palco e não tanto física. No nosso país, é um dilema muito grande e uma dificuldade imensa para um bailarino profissional manter-se em forma. Não há estruturas suficientes que nos apoiem. Quando se trata do corpo, precisamos de um espaço por mais que se diga que podemos ensaiar em qualquer lado, não é bem assim. O espaço condiciona sempre, ou seja, é muito difícil arranjar espaços e os que existem, exigem uma marcação prévia com muita antecedência”.

O Prémio Autores SPA 2022, Melhor Bailarina

“Este é o verdadeiro caso em que não se está mesmo à espera. Foi muito emocionante para mim quando soube, principalmente pelo trabalho em causa. Foi muito duro, seis meses de criação, um adiamento de estreia por causa da Covid, depois, mais cinco meses de espectáculos a interpretar um dueto em que durante duas horas não parava nem um segundo. Foi uma peça muito exigente fisicamente, emocionalmente levava-me a um estado muito transformado de interpretação e contaminava o meu dia-a-dia. Acabou por ser a primeira vez na minha vida em que senti uma coisa que se calhar na dança não se sente tanto como no teatro, porque fazia aquilo todos os dias, o personagem acaba por se confundir connosco, quem é quem!? Neste processo, os ensaios não tinham interrupções, a partir de certa altura com a peça já montada, um mês antes da estreia, o ensaio consistia em aquecer, fazer duas horas de peça como se ali estivesse o público, não se podia parar por motivo algum, não se podia beber água, nada. Quando acabava fazia o meu trabalho pessoal pós-ensaio e vinha embora. Isso transformou-se num ritual de vida”, recorda e acrescenta: “Foi muito especial ganhar este prémio porque é o reconhecimento desse esforço, de todo esse sacrifício. Apresentei a peça em Montemor, Guimarães, Teatro Circo em Braga, CCB e Coimbra”.

A bailarina gostava que a Póvoa tivesse mais espectáculos de dança para criar um público: “Em Setembro vou começar uma criação nova e quero muito trazer ao Garrett. Quando temos o Raúl da Costa a tocar no Garrett, a sala esgota. Para além de ser um maravilhoso intérprete, está em casa. Pode começar um pouco por aí, temos muitos bailarinos poveiros que estão a trabalhar profissionalmente e a ter muito sucesso, seja em Portugal ou no estrangeiro. Estamos todos com vontade de fazer coisas. O festival FIS tem tentado trazer as artes performativas, o circo e a dança, para o contexto da sala do Garrett, onde gostava de ter e ver mais espectáculos de dança porque o público constrói-se com a repetição”.

O sistema que permite dar continuidade a um trabalho transforma quase todos os bailarinos em freelancer, como explica Sara Garcia: “Uma coisa é estar numa companhia, acordo de manhã, faço a minha aula de aquecimento e tenho o meu ensaio, outra coisa é ser freelancer, às vezes tenho muito trabalho outras vezes passo dois meses a dar aulas e não estou a dançar. Manter a forma exige uma grande determinação que por vezes não existe, nem sempre estamos bem emocionalmente e nem sempre conseguimos estar a treinar sozinhos cinco ou seis horas que é o que deveríamos fazer por dia, sabendo que o corpo tem os seus limites. É uma questão complexa e difícil. Estes tempos de transição são sempre um dilema porque cada um de nós tem que arranjar uma estratégia individual para se manter em forma”. 

A bailarina tem um tempo mais curto, mas a coreógrafa pode ir até onde o coração bater: “Às vezes sinto-me mais intérprete e outra mais criadora. Enquanto intérprete é mais difícil criar para mim própria, mas também gosto de dirigir outros como criadora. Até hoje, em todas as minhas criações acabei por entrar também como intérprete, ficar do lado de fora só com os meus alunos. Normalmente, é por questões financeiras que acabamos por fazer solos ou peças em que também nós entramos porque não há recursos e acabamos por fazer todos os papéis, produtoras, ensaiadoras, intérprete e outras coisas mais. A produção é uma coisa que não se fala muito, mas nós enquanto freelancer perdemos muito tempo a fazer candidaturas, isso também é um entrave. Tenho que estar em forma, mas ao mesmo tempo se quiser ser criadora tenho que perder horas frente ao computador a escrever e a montar dossiers para uma candidatura que pode não ser apoiada. Estamos sempre a mandar tiros no escuro para tentar que alguém nos dê dinheiro para podermos desenvolver o nosso trabalho”.

O desejo que nos transforma e nos oferece o prazer de existir é para Sara Garcia “um constante desafio, onde não há tédio. Sinto que as novas gerações hoje em dia não tem paciência e não têm capacidade de foco no trabalho, até aqueles que dizem que querem muito ser, sinto que não têm a mesma dedicação que em percentagem eu via à minha volta quando era estudante. O concelho maior que posso dar a quem quer seguir esta profissão é que, tem que querer muito. Só aguenta quem sabe que é mais feliz com todos estes constrangimentos. Então, tem mesmo que querer, que perceber que vão ter que abdicar de muita coisa e fazer muitos sacrifícios e isso começa logo na escola”.

Por: José Peixoto

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