Voz da Póvoa
 
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Um estudante especial na Lisboa dos anos setenta

Um estudante especial na Lisboa dos anos setenta

Opinião | 27 Maio 2023

 

No início dos anos setenta a ditadura, a viver os seus últimos tempos, agravava a repressão e a censura. Apesar disso nas universidades os estudantes conseguiam resistir. Em Lisboa, a cantina da cidade universitária era um espaço onde, em relativa liberdade, se juntavam para tomar refeições a preços módicos, estudantes das, vizinhas, Faculdades de Letras, Direito, Medicina e Farmácia, mas também do Instituto Superior Técnico, de Economia e de outras mais escolas. Vinham de todo o país, das colónias e do Brasil. Juntavam-se por um qualquer interesse comum: Cénico de Direito, Coral de Letras, desportistas de várias modalidades vindos do estádio universitário ali ao lado. Porém eram as (des)afinidades politicas quem mais recrutava aproximações. Multiplicavam-se grupos de todos os credos da ortodoxia: marxistas leninistas de diversas filiações, maoistas de várias confissões, professos trotzquistas e até stalinistas incansáveis defensores da linha albanesa. Por vezes eclodiam violentas discussões em que cada orador de serviço reclamava para a sua tribo o exclusivo da pureza ideológica.

A cantina era um generoso espaço de liberdade onde passavam sem reparo comportamentos “fora da caixa”. Ainda guardo memória de alguns.

O António Guerreiro poveiro, licenciado em direito e já a trabalhar no Ministério das Finanças, continuava a ir à Cantina Velha onde de gatas espalhava pelo chão as páginas do Diário de Notícias.

O Coelho radical estudante de medicina, de estatura baixa, bigode exuberante e dono de uma voz tonitruante que desancava em tudo e todos.

O discreto Edgar Vales, irmão da Cita Vales, sempre a sondar simpatias pelas organizações unitárias afectas ao PCP.

O mais sui generis era um estudante de medicina já perto dos cinquenta, de quem se dizia que só lhe faltava uma disciplina para concluir a licenciatura. Vivia numa caravana no Parque de Campismo de Monsanto. Lavava a sua roupa na casa de banho da cantina e estendia cuecas e meias a secar numa corda que esticava para o efeito. Amante de bandas de música, por vezes aventurava-se, desde a varanda do 1º andar, nuns acordes de trompete, rapidamente abafados por uma estridente vaia dos comensais. No Hospital de Santa Maria Faculdade de Medicina estava proibido de entrar em enfermarias femininas por causa de equívocos exames que insistia em fazer às pacientes.

Aos fins de tarde descia para uma tasca, ali perto, na Rua de Malpique em frente à casa de Mário Soares, onde a troco de copos de três e alguns escudos media tensões e auscultava os clientes.

Era conhecido como “O pistoleiro”. Devia a alcunha a um episódio muito propalado mas nunca confirmado. Contava-se que, numa última tentativa de obter aprovação na tal disciplina que lhe faltaria para concluir o curso, antes do professor catedrático, que anteriormente o reprovara várias vezes, lhe fazer a primeira pergunta ele, exibindo uma pistola de alarme que trazia à cinta, afirmara "O senhor professor tem as suas armas e eu tenho as minhas, assim em igualdade de circunstâncias podemos começar o exame". Claro que o exame não se realizou mas a alcunha ficou.

João Sousa Lima

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