Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Lugares – A seu tempo

Turistando Lendas e Lugares – A seu tempo

Opinião | 13 Janeiro 2021

 

Dirigia-se no elétrico 28, da Baixa de Lisboa para o Bairro Alto, trajada como habitualmente: saia longa rodada, espartilho muito bem amarrado, a estreitar-lhe a cintura, cabelo preso em um coque baixo e um pequeno chapéu preso à base do coque, a arrematar-lhe o penteado.

Cotidianamente fazia o mesmo trajeto, vestida do mesmo modo, para tomar conta da sua Taberna Medieval situada no Bairro Alto, um sonho de décadas que concretizara à pala de muito sacrifício pessoal.

Olhava fixamente através da janela do transporte em movimento, enquanto os pensamentos galopavam à rédea solta e bebiam, ora do desengano do relacionamento falhado, ora do pesadelo do negócio quase falido.

Mesmo imersa em si mesma, não pode deixar de sentir os olhares curiosos pousados sobre si, que, naquela altura, já eram muito habituais e não causavam qualquer desconforto.

Entretanto um deles estava particularmente mais compenetrado que todos os outros:

Era um senhor, na casa dos seus 70 anos, que pegava o elétrico ao mesmo horário que ela diariamente.

Quando chegara ao destino, o homem desceu primeiro e fez menção de ajudá-la, já que a jovem trazia uma das mãos ocupadas com uma sombrinha finamente decorada, com rendas e fitas, usada para afastar o sol da sua pele e olhos sensíveis.

No momento em que agarrou-lhe a mão, perguntou:

— Porque te vestes assim? – e prosseguiu:

— És jovem, tens de mostrar mais as pernas!

E sorriu ingênua e docemente.

Surpresa com o comentário e com a preocupação genuína do senhor em trazê-la imediatamente de volta ao século XXI, retribuiu o sorriso e limitou-se a dizer convicta:

— Eu gosto assim.

Foi a caminhar pelas ruas cinzentas do bairro, protegida do sol pela sua sombrinha, e a sentir a Solidão instalar-se.

Afinal, ao perder tudo aquilo que considerava sagrado: seus sonhos, sua figura, começava realmente a crer que deveria travestir-se novamente de “pessoa moderna e casual”, e engolir ser simplesmente aceita no seio de uma sociedade que não lhe inspirava estima ou complacência alguma.

Perdida em seus devaneios fora chamada para fora de si por uma voz meiga, emitida por uma senhorinha muito idosa, que vinha em sua direção, apoiada pelo braço de um homem já adulto, que por semelhança poder-se-ia dizer seu neto.

— Que beldade! – exclamou ela, com o olhar radiante e um largo sorriso nos lábios.

A guria, admirada, teve a clara sensação de, naquele momento, ter sido mais um espelho que uma persona.

Um raio de sol iluminou o caminho à sua frente, e inundou o seu corpo e seu espírito de um calor morno e agradável. As vielas cinzentas do Bairro Alto ganharam vida e cor.

E, por instantes, todos os problemas desvaneceram, e restara apenas ela e sua maneira muito peculiar de ser e existir, embalada pela voz bendita de uma senhora desconhecida.

Esqueceu-se do relacionamento falhado, do negócio falido, das dúvidas sobre si mesma e compreendeu que, embora não fosse soberana do tempo, era dona do seu.

E confiante de que tudo acontecia no seu tempo (que era dela e não dele próprio), sorriu.

Agradeceu o elogio a si tecido e caminhou devagar rumo a sua Taberna, a sentir cada pedra, cada poça, cada bocado de relva que pisava pelo caminho.

A sentir o cheiro à história envelhecida que emanava das pequenas e amontoadas casas, a ouvir o rebuliço das vizinhas à janela, a contemplar o colorido das roupas a secar ao sol, nas pequenas varandas, como bandeiras hasteadas a demarcar cada pátria privada.

“Que beldade!” – repetiu para si mesma, comovida.

Entrou no seu estabelecimento, como quem adentrasse em um palácio, e levou para o seu interior todo o sentimento de pertença que possui alguém que não pertence a tempo algum. Experimentou toda essa plenitude e respirou em paz, a saber que em algum lugar do Bairro Alto, vivia uma senhora de outras eras, que não a via com estranheza e tampouco com os olhos do presente.

Mas que reconhecera nela a alma que carregava e que era, de algum modo, intemporal.

 

Maria Beck Pombo

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