Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Lugares – Maria Madalena

Turistando Lendas e Lugares – Maria Madalena

Opinião | 27 Outubro 2021

Sentada à mesa de um café na Estação Oriente, enquanto aguardava o autocarro que a levaria de volta ao seio da sua família, ela contemplava a vida que se agitava ao seu redor.

Os ciganos circulavam apressados na tentativa vã de vender qualquer coisa aos transeuntes, alguns pedintes imploravam por um cigarro ou um trocado, enquanto o resto da população se esquivava à força toda das investidas.
 
Reparou em uma mulher que se equilibrava habilidosamente sobre uma bota de cano longo que subia perna acima até a altura das coxas, tacão número 18, a fazer da escorregadia calçada portuguesa passarela.
 
Tez escura, cabelos aos caracóis e um corpo perfeito, embalado em um justíssimo e mais que curto vestido encarnado.

Lembrou de uma mulher assim, que conhecera há muitos anos atrás, quando pusera pela primeira vez os pés em Portugal.

Na pensão barata onde vivera teve a oportunidade de conhecer todo o tipo de pessoas, vindas dos mais distintos lugares, que partilhavam o mesmo sonho: estabelecer-se e prosperar em um país seguro, a fugir da violência e da pobreza da pátria-mãe.

Trabalhavam nos mais diversos setores, dentre eles o entretenimento de adultos e dessa forma garantiam o sustento próprio, bem como o das famílias que deixavam nos pagos donde vieram.

Já naquele tempo começou a questionar-se o que seria uma pessoa de valor, e pensou em quantas vidas cruzaram o seu caminho preenchendo-a de um conhecimento que não se encontra nos livros.

A história dessa mulher logo despertou seu interesse: oriunda do Mato Grosso, passava parte do ano em Lisboa a trabalhar em casas de alterne e prostíbulos afim de garantir o sustento da família em Além-mar.

Em terras lusitanas era a acompanhante sem luxo, que ganhava o pão a custo de muitas lágrimas e suor.

Ofendida, desprezada e mal-falada.

No Brasil era a mãe zelosa que criou exemplarmente quatro filhos, com o dinheiro que recebia do arrendamento dos barracões que comprava, fruto do seu trabalho em Portugal.

A filha mais nova, cursava medicina e acreditava piamente que a mãe trabalhava como cabeleireira.

O que significa uma mentira piedosa quando a 'plata' que se ganha é às custas de comer o pão que o diabo amassou?

Também ela caminhava altiva, orgulhosa de quem era e não se deixava abater pelos desacatos tecidos pelas más línguas.

Reconhecia a nobreza e o propósito das suas intenções, ainda que o mundo desaprovasse suas escolhas.

Essa mulher, assim como todos os outros que dividiram com ela o mesmo tecto, ensinou-a a olhar o ser humano de outra forma, para muito além das suas atitudes.

Ensinou-a que toda a gente tem telhado de vidro e a reconhecer que vender amor pode ter um santo propósito.

Pobre de quem acredita que a vida pode ser resumida a preto no branco pois deixam de ver as cores!

 

Maria Beck Pombo

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