Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Lugares – Grito de Liberdade!

Turistando Lendas e Lugares – Grito de Liberdade!

Opinião | 1 Junho 2022

 

Mirava-o, carinhosamente, no profundo dos seus serenos olhos, cor de avelã, enquanto ele abanava a cabeça, num ato solene de desaprovação ao cigarro que queimava entre os dedos dela.

Sentiu-se uma criança repreendida pela mãe por lhe ter arruinado as maquiagens, como se tivessem, por uma partida dos deuses, trocado momentaneamente de papéis.

Ela se indagava em silêncio por quantas vezes ainda contaria ao mundo histórias sobre a imensidão desse amor, tão vasto quanto mil galáxias.

Verdade seja dita que quanto maior o avançar do tempo, menor era a dor que a distância trazia, pois a consciência dos factos e dos atos, após devidamente justificados, eram merecedores do perdão e perdão é coisa que vem do espírito, não de palavras vazias articuladas pela língua.

Sabia intimamente que essa consciência é coisa que cresce com a idade, domando os sentimentos e libertando os rancores de modo a pacificar a alma.

E nesse cavalgar das estações tornavam-se cada vez mais cúmplices nessa jornada trilhada, entre vitórias e derrotas, acertos e enganos, por mãe e filho.

Nesse descompassar dos ciclos que ganhavam cadência quando se quedavam lado a lado.

Sentia a certeza de que, se pudesse curar as dores que ela mesma, involuntariamente, imprimira naquele jovem coração, seria capaz de ajudar a curar todas as feridas do mundo.

Fixara, por momentos, o espelho daquele olhar que trazia congelados os momentos da sua própria infância, que ganhavam lentamente movimento e permitia que vislumbrasse o filme que revelava onde perdera a própria Inocência. Desmantelada pouco a pouco pelas escolhas que os outros fizeram sobre o seu destino, sem que dele pudesse tomar as rédeas, fazendo dela a adulta cheia de falhas e artimanhas exigidas pela vida no ônus de sobreviver.

Começou a desatar os nós, um a um, e passou a compreender as atitudes das pessoas que regiam a sua criação, absolvendo-os da culpa que a conduziram aos seus próprios pecados pois a culpa não existe quando há zelo e amor.

O instinto não pode ser condenado quando vem na tentativa, muitas vezes vã, de levar a prole a bom porto pois tudo o que entendemos são as nossas razões, não temos controle do entendimento que o outro fará delas, tampouco das reações que nossos atos provocarão.

Essa é a grande lição que temos de aprender na vida: por mais parecidos que sejamos, cada qual é um universo e fala uma língua própria, que temos a necessidade de aprender para atingir a compreensão mútua e derrubar as barreiras que, inconscientemente, construímos para proteger a nossa Essência, para desamarrar a nossa Inocência sem medo de que ela seja novamente ferida.

Temos de exercitar a nossa capacidade de nos defender sem ferir ou esconder. Escutando mais, observando mais, vigiando mais nossos pensamentos, nossas atitudes, nossas palavras e, principalmente, abrindo-nos para desvendar o outro, despindo-nos de nós mesmos, dos nossos preconceitos, daquilo que pensamos saber.

Quando enfim conseguiu se libertar da sua imagem espelhada no olhar do filho, enxergou-o profundamente, cada momento da história entre os dois, distorcidos pela discrepância da consciência que cada qual tinha do mundo, naquela altura.

Dessa forma conseguiu falar claramente, como se pronunciasse a língua dos anjos, e convidou-o a também desatar os nós que lhe amarravam as lágrimas e apertavam o coração para, muito lentamente, enquanto trilhavam o caminho que partilhavam, reunidos ou separados, também ela pudesse ser ilibada da culpa que não tinha, por ser simplesmente humana e instinto, convicta de merecer como recompensa todo o amor daquele virtuoso coração.

E assim, libertos da armadura que edificaram para evitar a dor, confiando que ela ensina a evoluir e que ajudar-se-ão mutuamente a se recuperar das feridas, voaram alto qual Pombos-correios a espalhar pelos ares a notícia que todo os ser humano é criança por dentro e veio ao mundo para ser riso, não lágrima!

Os escudos não protegem, aprisionam!

 

Maria Beck Pombo

 

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