Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Lugares – Des(Informação)

Turistando Lendas e Lugares – Des(Informação)

Opinião | 13 Abril 2022

Sentada a mesa de um café ela presenciava, horrorizada, as cenas gravadas após o ataque em Bucha estampadas a quaisquer olhos através do ecrã.

Na mesa ao lado um guri na casa dos seis anos puxava o casaco da mãe a perguntar intrigado o porquê daquelas pessoas todas estarem a “dormir” na rua.

Sentia um misto de revolta e embaraço, sentia-se a invadir a privacidade de dezenas de famílias ao espreitar os corpos dos seus, jogados diante das câmaras operadas por homens cuja humanidade se perdera entre o bolso e a carteira, homens que desconhecem empatia, honra ou respeito. Que ignoram o verdadeiro valor da vida, que é muito mais complexo e superior que vender a morte.

Há, de facto, coisas que não tem preço, mas estas não pertencem aos pobres de espírito.

No tempo dela, ao menos, ainda tinham o cuidado de não roubar a inocência às crianças, garantindo que a tragédia se revelasse depois de Morfeu já tê-las embalado em seus braços.

Lembrou-se da infância, do jornal da escola, onde as mais desesperadoras más notícias eram as que anunciavam a mudança da professora mais querida para outra cidade, ou o encerramento da quadra de basquete para obras.

De resto, era um deleite se perder por entre as páginas de papel almaço impressas no mimeógrafo, com sua tinta azul-carbono e aquele cheiro a álcool tão característico.

“-- Se eu dissesse que, a meu ver, a infância cheira a álcool etílico, processariam os meus pais!”

Achou graça do pensamento, mas, para ela, era exatamente assim que cheirava a infância, entretanto a “culpa” era da escola.

Naquela época as informações eram reais e quem as recolhia e difundia tinha o dever de responder por elas.

Havia um código de honra entre notícias e factos, onde por factos entendia-se verdade!

Tentou recordar o momento em que os meios de comunicação passaram de soldados a defender a busca da integridade, a mercenários a fabricar verdades que alimentam uma horda indecente de pseudo-humanos, que de sapientes têm muito pouco.

Olhou ao seu redor e viu o aglomerado de pessoas a aproximar-se mais e mais da televisão, a pedir que aumentassem o volume, como cães que ouvem o último suspiro da caça de alguém, como coiotes que cheiram o podre da carne enquanto lambem os beiços.

Não podia participar de tal cenário, ela ainda era uma das poucas pessoas a procurar notícias de bebés que nascem gordos e felizes numa madrugada primaveril, de bombeiros que resgatam gatos presos entre galhos no quintal de algum vizinho, da comunidade que se reúne para ajudar a construir uma casa para alguém.

Intimamente ela continuava a ser a estudante ávida por partilhar com o mundo a beleza da vida, a generosidade do homem, as boas notícias. E se em algum momento fosse mister que partilhasse uma má, que esta fosse, primeiramente verdade, e depois absolutamente necessária, pois viera a esse mundo para ser pombo, não corvo, disso tinha ela a certeza.

Apenas lhe importava as vidas que se entrelaçavam com a dela, dessas ela tomava conta, quando assim lhe exigisse o momento. Mas do resto do mundo, das celebridades a desfilar sobre o tapete vermelho aos anónimos tombados sobre o encarnado do seu próprio sangue, das vidas ceifadas ou não por uma doença desconhecida e da eficácia das vacinas e tratamentos, da relação direta que têm a queda abrupta das mortes por COVID e a evolução da guerra, disso tudo ela não queria notícia pois não lhe alimentava a alma.

Ela não queria uma realidade inventada e aumentada com a intenção de causar pânico, medo ou instigar os piores sentimentos humanos. Não queria ter a curiosidade a se esgueirar por entre as vidas daqueles que lutam a força toda pelo direito à sua privacidade, não queria limpar o sangue que mancha as bancas dos jornais.

Queria trazer o espírito imaculado e para isso escolhia muito bem onde deixar a sua marca, não impressa para qualquer um, mas para uns poucos que valem muito.

O verdadeiro valor é como a verdade, não tem preço!

 

Maria Beck Pombo

 

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