Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Lugares – Bendita casa assombrada

Turistando Lendas e Lugares – Bendita casa assombrada

Opinião | 5 Julho 2022

 

Há quem diga que aquela era uma casa assombrada.

Situada em um decadente e antigo edifício, próximo ao Jardim da Estrela, abrigara, muito antigamente, um lar de idosos e fora adaptada para servir de pensão para imigrantes, na maioria sem lenço ou documento, que sonhavam construir uma vida em Portugal.

O alto pé-direito conferia alguma amplitude ao ambiente opressivo, onde até às arrecadações foram transformadas em minúsculos quartos afim de rentabilizar o espaço.

Entre aquelas paredes pessoas de diversas nacionalidades dividiam uma única cozinha e duas casas de banho, aprendendo aos poucos a se organizarem de modo a realizar suas tarefas diárias e evitar conflitos, abdicando aos poucos do egocentrismo em prol do bem-estar comum.

Era uma casa que não dormia, não distinguia noite de dia, que refugiava o ecoar das vozes, das gargalhadas, dos passos que ressoavam contra o envelhecido assoalho de madeira, produzidos pelos passos bêbados daqueles que adentravam o recinto, perturbando o sono dos que eram obrigados a acordar com o raiar do sol.

Uma miscelânea de nacionalidades, objetivos, aspirações e culturas invadiam os corredores, que aproximavam os habitantes entre si, promovendo amizades improváveis, que jamais seriam semeadas no mundo exterior àquelas paredes, berço de casamentos e separações, encontros e despedidas, guerras e reconciliações.

Onde pessoas tão distintas ofereciam consolo e carinho àqueles que hesitavam na busca do sonho quando a saudade da terra natal apertava e as dificuldades da vida de imigrante lhes tomavam o espírito de assalto, corroendo a vontade e cobrindo de negro o coração.

Onde os preconceitos eram, um a um, deitados por terra e todas as raças, credos, línguas e profissões eram acolhidas e respeitadas, e estreitavam laços que se manteriam firmemente amarrados para muito além daquelas paredes.

Laços que testemunhariam as conquistas e derrotas, as alegrias e tristezas, o nascimento de filhos. Que enxugariam as lágrimas deitadas pelo luto daqueles que perderam os seus pelas terras além-mar, que fariam daqueles que permaneceram unidos uma grande família alicerçada no amor incondicional, no respeito e na fé que depositaram uns nos outros.

Aquela tornara-se, pouco a pouco, uma casa assombrada.

Assombrada pela energia dos que lá viveram, pelas experiências que ficaram impressas naquela atmosfera, pelos devaneios e incertezas que galopavam e relinchavam aos ouvidos dos que vieram depois, pela bondade das mãos estendidas a completos estranhos que se entranharam na alma dos que lá viveram e adicionaram à bagagem amigos verdadeiros para toda a vida.

É uma casa que atesta que nem todas as assombrações são malditas, algumas são muito bem-vindas e nos aquecem o coração.

Maria Beck Pombo 

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