Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Lugares – Aquilo que o tempo deixa

Turistando Lendas e Lugares – Aquilo que o tempo deixa

Opinião | 19 Outubro 2022

 

Na esplanada do café, situado por detrás da igreja, ela saboreava calmamente o seu brioche misto, que, naquele momento, lhe sabia pela vida.

Tinha o pensamento a vaguear ao longe, embalado pelos sinos que anunciavam o trocar das horas, e inspirava profundamente deixando que o ar do outono, carregado da melancolia que ele sempre fora Mestre em trazer, lhe preencher o espírito.

O sabor doce e salgado se misturava lentamente em sua boca a cada mastigar e a transportou para além-mar, para a terra em que essa combinação tão inusitada, embora consumida quase diariamente por seus progenitores e veementemente rejeitada por ela quando guria, fez casa nos seus hábitos de pessoa crescida.

Lembrou do apartamento na Rua Duque de Caxias, comprado em conjunto com a irmã, possibilitado por uma bendita herança que as permitiu realizar a chance de ter o seu próprio cantinho, não que desgostassem de partilhá-lo com os pais e as duas irmãs mais novas.

Facto é que mudaram-se, entretanto a família sempre continuou unida nos almoços, jantares e folias, atestando que laços de sangue e alma não se quebram com a distância.

A ampla sala de estar arrebatara por completo o seu coração, quando abriu a porta da entrada, na companhia do corretor de imóveis. Imediatamente pode vislumbrar as reuniões com amigos e família, ela, que sempre fora pessoa de grandes convívios, mesmo que isso nem sempre conseguisse a resgatar das garras da Solidão.

Os móveis doados por pais e familiares davam à casa um ar descontraído onde as cadeiras de um antigo cinema, que havia sido encerrado há muito tempo, conviviam com poltronas repaginadas, colchões cobertos com colchas e muitas almofadas para fazer as vezes de sofá e cama quando o entrevero se estendia madrugada a fora.

E porque não falar na rede cuidadosamente instalada em um canto do aposento, que era alvo de disputa pelos amigos a ver quem se deitava nela primeiro.

Eram bons tempos em que os amigos reuniam-se no interior do seu lar todos os fins-de-semana, fazendo com que ele fosse cada vez mais doce, a tocar violão e cantar para espantar os males, beber para enxotar as mágoas, rir para trazer a esperança e chorar para aliviar a alma.

Uma época em que descia a rua cedo da matina para comer um pastel na Padaria Cristal, para recompor-se do trago e que tinha a massa tão doce quanto o brioche que consumia agora, talvez por isso tivesse, naquele momento, resgatado a memória adormecida em seu subconsciente.

Eram lembranças como essa que volta e meia desassossegavam o seu coração pois, embora se soubesse passado e que a vida de todos aqueles com quem partilhara aqueles preciosos momentos evoluíra tomando as rédeas de outros destinos, ela era uma pessoa para a qual a boémia fora passada através do sangue, sendo assim, a sua atual vidinha pacata e modesta descontentava esporadicamente a prenda ávida por estar entre as gentes a brilhar para mil olhares e encantar a multidão, destacar-se ainda que não o fizesse da melhor forma.

Para ela a noite era o paraíso onde a alma dos poetas desgarrados se encontravam para compor poemas que dariam sentido à vida. E a Solidão era a madrinha escondida no quarto de visitas, a espera nas sombras que o último convidado se retirasse da festa.

É pena que a única companhia que o tempo não levou foi justamente a da madrinha!

 

Maria Beck Pombo

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