Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Lugares – Afuganchos

Turistando Lendas e Lugares – Afuganchos

Opinião | 19 Janeiro 2023

 

Era década de 90.

Dentre os estudantes da Escola Estadual de 1⁰ e 2⁰ Graus Margarida Pardelhas, é de se confessar, que ela não era de todo a mais popular.

Era a guria inadaptada, grande demais para a idade, mais interessada em livros do que em bonecas, sempre pronta para uma manifestação ou para servir a alguma boa causa. Resumindo, era tudo aquilo sobre o que os jovens populares tripudiavam com prazer.

Vez por outra conseguia conquistar algum respeito, quando a rebeldia tomava o seu espírito de assalto e não deixava barato uma injúria, como daquela vez em que se recusou a assistir às aulas de educação religiosa depois da professora ter lido em voz alta, para toda a turma, um trecho do diário confiscado da sua mão.

Levantou-se da cadeira a tremer como taquara ao vento, suas bochechas ardiam e se coloriam de encarnado, enquanto as lágrimas magoavam a sua pele como ácido e saiu da sala resolvida a comunicar a situação à direção. 

A professora em questão teve uma merecida chamada de atenção, enquanto a guria foi dispensada do calvário e entregue ao paraíso: durante as aulas de educação religiosa ela deveria permanecer na biblioteca a ler.

Fora a sua primeira vitória contra o sistema, o que a alegrava mas não a fazia sentir menos só, o que ela mais almejava era encontrar alguém com quem partilhar da sua estranheza.

Como resposta às suas preces uma nova aluna fora integrada na sua turma. Tinha cabelos castanhos aos caracóis, uns grandes olhos azuis que faiscavam com a curiosidade de mil gatos e dentro de si carregava inadaptabilidade equivalente à dela.

Não foi difícil ver nascer daí uma maravilhosa e fértil amizade, que fora instrumento para a realização de dezenas de projectos de inspiração artística, incluindo a adaptação do livro de Stella Carr – Afunganchos - para o teatro. Um livro que até hoje, justiça seja feita, merece a sua atenção.

Tudo o que aquelas duas cabecinhas puderam, criaram, até esgotar o seu tempo no calendário dos homens, o que obrigou a amiga tão estimada a ir viver em outros pagos.

Chegaram a trocar um par de cartas mas o correio, sabem como é, nem sempre desempenha suas tarefas com primor. E dessa forma perderam-se uma da outra.

Perderam-se fisicamente, jamais em pensamento, pois este continuou a engendrar uma forma de se encontrarem. As redes sociais devem ter alguma utilidade, não? 

E assim será, após três décadas de espera um novo ano trará de volta uma velha e ímpar amizade.

Há que crer para ter!


Maria Beck Pombo

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