Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Lugares – 1989

Turistando Lendas e Lugares – 1989

Opinião | 4 Janeiro 2022

O ano era 1989, estreado com direito a naufrágios, ascensão de imperadores, generais depostos, nascimentos de estrelas e de capitais, a queda do muro que dividia Berlim em duas.
Ano em que Raul Seixas pegou carona na cauda de um cometa, juntamente com Salvador Dalí, Nara Leão e Luiz Gonzaga, nos deixando como herança imagens e músicas que atravessariam gerações a maravilhar olhos e ouvidos.

Ano em que o Brasil clamava, em uma só voz, que a Democracia passasse da teoria às urnas.

Naquele tempo eu, ainda mal saída dos cueiros, pouco compreendia o conceito dessa palavra que ressoava de boca em boca como um mantra. Porém o conceito de Liberdade é algo que carregamos no sangue desde o nascimento e era por essa Liberdade que eu estava mais do que disposta a lutar.

Mas eu não lutava por mim mesma, pois era criança que não conhecia cárcere.

Eu era daquelas crianças que experimentavam dia-à-dia a bênção de poder passar as tardes a pular amarelinha e bater figurinhas, a trocar papéis de carta e brincar de esconde-esconde com os vizinhos no parquinho em frente a casa da minha avó.

Daquelas crianças que viveram das últimas infâncias felizes, de ralar o joelho no asfalto, de rolar na relva, subir em árvore e partir, às boladas, as vidraças dos vizinhos.

Daquelas que saíam de casa ao amanhecer e voltavam, em segurança, ao cair do sol, para jogar futebol na rua em frente a casa, que tocavam as campainhas alheias e corriam como se não houvesse amanhã, a fazer ecoar gargalhadas por onde passassem.

Daquelas sempre prontas a estrear o par de Havaianas novos da mãe, quando a asneira era imperdoável.

Eu lutava, à minha humilde maneira, pelas pessoas crescidas ao meu redor. Por aquelas que via torturadas física e emocionalmente pela tirania que impele alguns homens a oprimir outros homens, pela sede desmedida de poder que consome os fracos de espírito.

“Voava as tranças”, na bicicleta herdada da minha tia mais nova, a espalhar pela cidade milhares de panfletos que estampavam a figura de um jovem homem que prometia colorir um Brasil desbotado por tantos anos de Ditadura Militar.

Naquele momento a Esperança ganhava outros tons de verde, para além daqueles que continham a expectativa de encontrar o Pai Natal e a Fé cega na existência do Coelho da Páscoa.

Era o verde-vivo do broto que rompe a terra sob o sol da Primavera, que se torna agente e parte da mudança da paisagem que o circunda, na certeza de vir para somar.

Naquele momento pus meu coração à janela e abriguei a primeira de muitas setas, que me ensinaram, com o passar do tempo, que não se muda o rumo da história com palavras.
 
Há mais tentações entre a cabeça e o coração de um homem do que julga nossa vã filosofia!

Maria Beck Pombo

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