Voz da Póvoa
 
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Turistando Lendas e Ligares – Bilhete só de ida

Turistando Lendas e Ligares – Bilhete só de ida

Opinião | 10 Agosto 2021

 

Entrou, aliviada, no autocarro. Ocupou o lugar marcado em seu bilhete, olhou pela janela e pediu aos deuses que pudesse fazer aquela viagem sozinha, ou, ao menos, ao lado de alguém que lhe tivesse algo a acrescentar.

Sempre que sentia a vida a lhe pesar sobre os ombros, fazia esse trajeto, de duas horas, entre Santa Maria e o seu pago natal.

Sentia que, dessa forma, era capaz de deixar o problema na estação e resolvê-lo, parte a parte, da mesma forma que a paisagem se desdobrava e se revelava, curva após curva, diante do verde dos seus olhos.

Estava prestes a recostar o assento, para melhor aproveitar a vista, quando, a desfilar sobre um tacão número quinze, um corpo de um metro e oitenta de estatura, minuciosamente esculpido de modo a quase atingir a perfeição, entrou pela porta frontal da viatura e caminhou justamente em sua direção.

Boquiaberta assistiu, quase em câmara lenta, a beldade sentar-se ao seu lado, jogar os lisos, longos e negros cabelos para trás dos ombros, entender-lhe a mão e apresentar-se:

— Muito prazer, eu sou a Bianca.

O choque a deixou muda!

A voz que adveio daquele ser estava longe de corresponder a graciosidade da sua figura: era tão áspera quanto a tez oculta pela maquiagem que trazia sobre a face.

Processou toda a cena num piscar de olhos, se recompôs e também se apresentou, fazendo questão de dar à sua companheira de viagem todo o espaço de que ela pudesse necessitar, enquanto agradecia, em silêncio aos deuses, pela graça concedida.

Não tardaram a travar conhecimento e, em menos de nada, o clima de intimidade instalou-se entre as duas.

Desde tenra idade Bianca sabia que era diferente. Enquanto os encartes de roupa interior a exibir modelos em trajes mínimos causavam furor entre seus primos e amigos, ela se interessava mais pelos modelos masculinos.

Passou a maior parte da infância a esconder a diva que vivia dentro de si sob camadas de medo, receio e solidão.

Apenas na pré-adolescência teve coragem de revelar à mãe a sua verdadeira essência, quando foi pega a vestir a sua roupa e maquiagem às escondidas.

Desde então passaram a ser fiéis confidentes e enquanto a mãe, secretamente, lhe comprava roupa interior feminina, o pai, um militar rude e intransigente, a expulsou publicamente de casa, condenando-a às esquinas frias e perigosas da Avenida Presidente Vargas.

Em duas horas a história de uma vida inteira lhe fora revelada e cada frase proferida pela boca de Bianca enterrava um preconceito, dando lugar a um profundo respeito.

Quando entrara naquele autocarro, na intenção de encontrar a solução para um problema, jamais pensara que sofreria uma transformação tão profunda, ou que daria a muitos dos seus preconceitos um bilhete só de ida para fora da sua vida.

Riu-se por superestimar seus fantasmas e reconheceu o valor, a fibra, a audácia de tantas pessoas menosprezadas diariamente pelo nosso preconceito, pela nossa intolerância, quiçá inveja.

Porque muitos inquisidores foram os mesmos que se valeram dos encantamentos oferecidos pelas mulheres a que condenaram à fogueira, assim como muitos homens rudes e intransigentes procuram, em sigilo absoluto, os serviços prestados pelas colegas de profissão de Bianca antes de condená-las à forca.

Despediram-se na estação e ela ficou a contemplar a sua fantástica companheira de viagem a entrar no autocarro que a levaria para a Universidade, sentindo o coração a se inflamar de orgulho, como se fosse a própria mãe daquela grande mulher.

Algumas pessoas são tão grandiosas, que quase não cabem no corpo que têm!

 

Maria Beck Pombo

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