Só falta mesmo abrir as lojas, os cafés, os restaurantes, enfim todos os negócios, porque as pessoas, essas, fartaram-se de encher os ouvidos às paredes e andam todas na rua, a pé, de bicicleta, de trotinete ou de carro. Procure um lugar para estacionar e vai ver quantas voltas dá até que a sorte lhe ofereça um. É curioso, mas os números estão a descer rapidamente e, começo a desconfiar que não foi por terem trancado tudo.
Na verdade, o sol abre as portas a toda a gente e não há ninguém que ao fim de tantas semanas e meses de medos, suporte mais ficar em casa. Cansa também ouvir os mesmos de sempre a dar palpites que revelam mais as suas carteiras rechonchudas que preocupações pela miséria alheia. Na verdade, estamos a falar de heróis na linha da frente, mas ninguém sabe que nome dar aos 842 médicos que abandonaram ou deixaram o Serviço Nacional de Saúde desde o início da pandemia. Em tempos que já lá vão, embora os músicos ainda cá estejam, havia uma banda que se chamava, Os Ulisses, os Cobardes e os Heróis.
O povo pode não ser o melhor analista, saber fazer juízo da tragédia sem verter de choro, mas tem a certeza que um livro o ajudava a ficar em casa, mas aprisionaram-no nas estantes da livraria, mesmo ao lado do caderno que pode comprar. Agora, até o podem libertar, mas fica o cadastro. Há ainda, a máquina de café com moedinha, nas lavandarias, nas bombas de gasolina e outros espertos a encontrar os buracos da lei que proibiu servir o dito ao postigo.
Também ninguém percebe porque é que os barbeiros ou cabeleireiros estão fechados e os dentistas não. Um trata do nosso bem parecer exterior e o outro do nosso sorriso, mas escarafuncha dentro da boca, logo mais próximo de um contágio. Nestas coisas da memória, recordo o meu avô contar que eram precisamente os barbeiros que, para além de cantar o fado, também arrancavam os dentes. Depois, essa história de poder dar um mergulho no mar, mas ser proibido atravessar o areal, só dá mesmo vontade para saltar da falésia.
Pablo Rios Antão