Voz da Póvoa
 
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Retomar a utopia

Retomar a utopia

Opinião | 22 Abril 2024

 

O que primeiro aprendi com o 25 de Abril foi o levantar dos olhos do meu próprio umbigo para ver o que está à volta, com um olhar novo, livre e sensível, uma nova idade a reconhecer-me parte do todo, com todos, diluindo fronteiras.

Percebi com clareza que a novidade é ajudar o outro a superar as suas fragilidades e a não aproveitar delas, a não as prolongar infinitamente, geração seguida a geração, para benefício próprio ou de uns poucos. Percebi que, ao contrário do conformismo estúpido de que “pobres sempre houve e sempre haverá”, se tornou urgente acabar com a pobreza e com os mecanismos que a criam. A começar pela pobreza de espírito, amiga da hipocrisia e da farsa.  

Cinquenta anos depois, apesar de tanta e boa transformação e de importantes avanços no sentido certo da História, reconheço com tristeza a vontade pelo retrocesso, pelo regresso à anti humanidade. Perdeu-se a vergonha e proclamam-se velhos desejos negros como novidades palpitantes.

Muitos dos que fingem festejar Abril continuam a ver o mundo, não com a cabeça, muito menos com o coração, regressando à pequenez do próprio umbigo. Por isso, corremos o risco de ver sorrisos e cravos vermelhos na lapela da farsa. 

A madrugada que Sophia esperava, o dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, não foi recebida do mesmo modo em todos os lugares. Nem o tempo que se lhe seguiu tem sido vivido de igual forma. Por aqui, a Direita nunca percebeu o sonho. Reagiu. Depois sossegou, só aparentemente. No exercício do poder manteve-se e ainda hoje é autocrata, negando transparência, incapaz de diálogo, com tiques de intolerância. A maior parte do tempo ignorando outras vozes e outros pensamentos.

No início de 70 a cidade tinha começado a rebentar as costuras. Trinta anos depois e muitos malefícios feitos, os instrumentos de gestão do território chegaram tardiamente. Contaminados por uma visão da cidade como mercadoria. Apesar dos avisos, a cidade acabaria por acumular erros que conduziram aos actuais problemas de habitação, à mediocridade dos transportes públicos, ao ambiente em déficit de espaços verdes, apesar de aqui e ali se ter melhorado o espaço público. As regras são muitas vezes texto adormecido, usadas com uma flexibilidade muitas vezes discutível. Permanece um M a mais, o QUEM em vez do QUÊ. O movimento cooperativo pouco fez e foi apagado. As iniciativas municipais de habitação são incipientes, sobretudo quando comparadas com as melhores práticas do país. Já a especulação imobiliária agradece as opções urbanísticas muitas vezes irracionais enquanto o capricho teimoso faz edificar elefantes brancos. 

Nos 50 anos do 25 de Abril, se é certo que houve desenvolvimento em democracia, não mudou ainda tudo o que devia mudar. Há muito ainda para avançar. Qualificar o desenvolvimento tornando-o mais ecológico e amigo das pessoas. Sair dos mínimos democráticos e fazer uma Democracia adulta, efectiva na diversidade de opiniões, alargando a partilha transparente da informação e o diálogo sério.   

A Utopia de Thomas More tem quinhentos anos. Há cinquenta, num movimento único de generosidade e de esperança, o 25 de Abril retomou a ideia de utopia de que gosto na versão do cineasta e poeta, Fernando Birri: "a utopia está lá no horizonte. Aproximamo-nos dois passos e ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."

É essa a minha proposta nos 50 anos do 25 de Abril: que tenhamos a consciência do que falta fazer e da urgência do caminho.

j.j.silva garcia

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