Voz da Póvoa
 
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O relato dramático de Maria Canito, pescadeira de Vila Chã

O relato dramático de Maria Canito, pescadeira de Vila Chã

Opinião | 2 Novembro 2022

 

Os relatos heroicos das gentes do mar da Póvoa, de homens quase em exclusivo, sempre me deixaram o espanto de quem nunca se aventurou, num barco artesanal, além do Penedo da Forcada, ao largo da praia da Fragosa, Aver-o-Mar. Das mulheres o meu mar não falava, a não ser da Tia Clara que acompanhava o seu homem na faina, o que dava azo a comentários pouco abonatórios, para ele, conforme testemunho do meu primo Eduardo.

Daí que o documentário de Gonçalo Teles – A Mãe e o Mar - me tenha tocado o coração,  mulheres e homens, estes a recordarem vidas do mar de Vila Chã com destaque para  as últimas mulheres-arrais, caso único de mulheres no comando dum barco. Tive a oportunidade de ver na praia de Vila Chã o filme e não esqueci o relato duma mulher, Maria Ramos Canito, nascida a 5 de Fevereiro de 1925 e, segundo a cédula marítima, da Capitania de Vila do Conde, que trazia nas mãos, profissão pescadeira, olhos castanhos, 1,55 m, cor branca, inscrita a 4 de Setembro de 1942.

“Comecei com o meu pai e o meu irmão Custódio no barco do tio Cereja; saí do meu pai porque ele era muito mau e batia-me muito. Um dia cheguei a casa e disse à minha mãe: Mãe, o pai que arranje outro camarada que eu não vou mais; que arranje outro camarada que eu também vou arranjar”.

A repressão parental imperava mas também a decisão duma mulher – Ele não me chega mais, porque se ele me chega a mão vou ali ao posto e ele vai para a cadeia - que mostrava a têmpera que a guiaria em situações no limite da sobrevivência.

“Apanhámos uma tempestade, muita trovoada, muito vento. Achou-se nevoeiro e ele disse (ele, o tio José Coco, arrais, com quem fora trabalhar): - O rumo é este! Você vai errado. -Tu és tola… tu não sabes nada. Você vai ver se eu sou tola ou se sou fina. Estávamos para lá de Viana. -Ai minha menina, tu é que sabias. Lá vamos nós contra o vento, uma grande tempestade. Chegámos a terra, desta já me livrei! Apanhei muitas…”

Como muitas mulheres da beirada do mar, iam ao sargaço no inverno; estas, de Vila Chã, no verão metiam-se no barco artesanal, de pesca à linha, e faziam pela vida.

“Um dia a tia Matilde pediu-me para ir ao mar com o homem e eu fui; fomos pelo leste e lá tudo correu bem. Ele conhecia as marcas; estávamos terra fora, trinta e três braças se fosse um homem grande…”

Assim começa a epopeia dum homem e duma mulher cujo relato, de tão extraordinário, nos deixa incrédulos. Fica para uma próxima crónica.

 

Abílio Travessas

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