Voz da Póvoa
 
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Miguel Torga?!...

Miguel Torga?!...

Opinião | 10 Setembro 2020

Em 1983 leccionava eu numa vilazinha de interior e, sobraçando um livro de lombada avermelhada, tipo Bíblia ou Missal, questionou-me uma transeunte:__ Desculpe, você não é testemunha de Jeová? __Ó minha Senhora, foi por milagre de Deus que eu nasci profano (citei um Resistente, calhou).

Por essa altura tinha já pisado muitas pedras desse “oceano megalítico” afável quanto tenebroso, polvilhado de urzes, que o Reino Maravilhoso transmontano constituiu desde a “Criação do Mundo”.

Anos volvidos, o fascínio por M. Torga deu lugar a uma espécie de culto a ponto de encomendar uma escultura do seu rosto, em bronze, que o escultor vila-condense executou com mestria.

Tal culto não degenerou em monoteísmo fundamentalista (não estivesse já prevenido de que “Hinos aos deuses, não, os homens é que merecem que se lhes cante s virtude”). E vai daí, emparceirando os seus companheiros de espírito (e da vida real, não é por acaso) M. Alegre e Sophia M. Breyner, criei a trindade da minha devoção. Trindade esta não necessariamente santa mas, sublinhe-se, ímpar na confluência de valores pelos quais a vida ainda vai valendo alguma coisa: Liberdade, Dignidade, Beleza (Cf. Ode à Beleza).

Talvez não fosse necessário todo este preâmbulo para justificar o espanto que experimentei ao deparar-me, via telemóvel, com a figura que do Poeta foi feita à custa do sumo sacrifício do Negrilho (“Negrito”, segundo certo repórter palrador). Passe o entendimento retrógrado que tenha eu da arte mas certo é que me custa conceber que ela seja executada à machadada, à cutilada, à picareta, à motosserra… Faltar-lhe-á sempre o toque das mãos (com as quais “tudo se faz e se desfaz”) ou, preferindo-se, “o jeito que tem antes de mestre o aprendiz”. Repudio também que se considere tudo “louvável” desde que seja para homenagear alguém. Sob esse “manto diáfano” da hipocrisia, fazem-se proliferar estátuas em qualquer lugarejo só porque o Poder se achou com autoridade e competência para tal. Exemplos?!... Basta sair do confinamento a que nos votaram há …décadas. Apontemos ao impacto que esta querela pode ter nos jovens…que os outros… é como o Covid…

Julgo estar a ver o espanto das crianças que serão levadas a S. Martinho Danta (a “pagar o tributo à cultura”, pois claro) ao depararem-se com a carranca do Poeta: “Que poeta feio!” (no imaginário dos pequenotes todos os poetas são perfeitos); “mas este é não é o Adamastor, figura lendária e monstruosa da nossa história trágico-marítima?”, questionarão os já crescidinhos; Mas o Torga não dizia que a sua vida tinha sido “ uma realidade trágico-terrena batida pela tempestade”? Por aí fora…

“Interajam” com o Negrilho (esse “gigante a sonhar…onde os pássaros e o tempo fazem ninho”, árvore a quem impunemente foi negada a honra de morrer de pé, e ela vos dirá (claro que há árvores que falam: ”Quando chego de longe e conversamos é ela, Negrilho, que me revela o mundo visitado”), no tom ameno mas implacável que é o seu: “Não Passarão…o último triunfo é interdito aos heróis que o não são”; “Convosco não, cobardes, à quente romaria do futuro não vão homens obesos e cansados”; Apetece é “Não dizer nada, chorar…como a criança que já não tem confiança no próprio Deus da doutrina”. Quem os consolará?!...
        
Alcino Santos

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