Voz da Póvoa
 
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ESCOLA DO DESTERRO

ESCOLA DO DESTERRO

Opinião | 17 Dezembro 2020

Depois da Mestrinha das Senhoras Calheiros, ao acabar de fazer seis anos, ingressei na Escola do Desterro onde passei os quatro anos seguintes sob a orientação da Srª Professora D. Alice Correia. Foram tempos de muitas e diversas aprendizagens. No fim, passado com aprovação o chamado “Exame da 4ª”, sabia ler e escrever com desembaraço, redigir uma composição com princípio meio e fim respeitando as regras da ortografia e da sintaxe, escrever um ditado sem erros, era capaz de interpretar um texto e decompô-lo – dividir as orações como se dizia – cantar as tabuadas, efectuar operações de aritmética, identificar sólidos e figuras geométricas. Tudo isto além de conhecer as dinastias nomes e cognomes dos 35 reis de Portugal, descrever os percursos dos rios da nascente até à foz, nomear os respectivos afluentes e ainda saber de cor as linhas férreas nacionais suas estações e ramais. Há que reconhecer que o nível de exigência era grande e por isso parte significativa dos alunos não atingia os objectivos e o abandono escolar era uma realidade tolerada apesar do ensino básico ser obrigatório.

Em conjunto com os conhecimentos úteis vinha a forma(ta)ção em valores do chamado estado novo ou seja da ditadura. No registo “português suave” o estado era protector, a família devia ser numerosa, humilde, com origens rurais, reconhecida ao fundador do regime, as crianças obedientes e respeitadoras da autoridade.

O edifício da escola estava isolado cercado de terrenos de mato e campos agrícolas, apenas duas ruas lhe davam acesso as actuais ruas Quim Tenreiro e Garcia de Carvalho. Contavam-se pelos dedos as casas, umas vazias para alugar a banhistas durante o Verão, noutras moravam famílias da classe média.

A sala de aula que nos coube durante os quatro anos foi a que a do lado direito no Rés-do-chão da ala destinada aos rapazes, havia uma lareira ao fundo, carteiras duplas com pequenos tinteiros de porcelana branca, um enorme quadro negro encimado por um crucifixo e dois quadros com fotografias de “Suas Excelências” o Presidente da República e Presidente do Concelho, um estrado com a secretária da professora, na parede lateral um ou dois armários e vários mapas. Nas traseiras do edifício havia, para os dias de chuva, um coberto que abrigava também as minimalistas instalações sanitárias de onde saía um cheiro insuportável apesar dos baldes de creolina que as empregadas lá despejavam nos intervalos do crochê.

Muitos dos meus colegas moravam em ilhas, principalmente nas da rua Serpa Pinto, os pais andavam ao mar ou ao bacalhau em “São Jones”. Havia várias “seitinhas” com hierarquia rígida e atribuições vastas que iam da auto protecção dos seus membros à definição das épocas dos jogos – botão, espeto, pião, estrancela, cabazes, etc – passando pelas incursões nos campos circundantes da escola para arrancar e comer cenouras, nabos e cebolas. Grande parte andava descalça, boina na cabeça, trazia a tiracolo a saca de pano de forma rectangular onde guardava a lousa, o livro de leitura. Recordo dois alunos diferentes, o Berto Mesquita com trissomia 21 que não passou da primeira classe e o Zé Manel, sobrinho da Sra. Alzira que tinha uma loja na esquina da rua Serpa Pinto com a Latino Coelho, com obesidade mórbida em relação a ambos havia um sentimento colectivo de protecção que repelia qualquer tentativa de Bullying.
 
Havia aulas de manhã e de tarde com uma pausa para almoço, ao Meio Dia chegava à escola o camião da Legião  que descarregava uns enormes panelões de sopa deixando à sua passagem um agradável cheiro a feijão, juntamente com uns quartos de sêmea era a refeição dos alunos “necessitados”. À tarde no fim das aulas disputavam-se no largo fronteiro à escola épicos desafios de futebol com uma bola de trapos na versão “todos contra todos”, não eram admitidos jogadores com botas ou sapatos, frequentemente acabavam em correrias, pancadaria generalizada ou mesmo à pedrada, mas no dia seguinte era como nada se tivesse passado.


João Sousa Lima

 

[1] “Milícia criada em 1936 com o objectivo de "defender o património espiritual da Nação e combater a ameaça comunista e o anarquismo",

 

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