Voz da Póvoa
 
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Dia do Mar com “Lobos”

Dia do Mar com “Lobos”

Opinião | 25 Novembro 2021

Em memória ao meu avô José Fortunato, o "Zé da São Benta".

"São 14 horas duma quarta-feira qualquer... dou por mim sentada numa pedra, olhos fitos num quadro vivo, quotidiano desta zona, imagem que (oh! quem me dera ser capaz!) não saberia pintar.

O mar molda a baía, as ondas sobem a praia acariciando num misto de raiva e delicadeza a areia. O vento sopra de Norte, levanta as ondas, fá-las cavalgar sem nexo, para depois se virem, ingloriamente, desfazer-se em espuma.

A noite foi tempestuosa e a maioria dos barcos estão prudentemente varados na praia; os pescadores, esses vejo-os agarrados às redes, preparando, remendando, armando anzóis. O amanhã é sempre uma esperança renascida. No largo fronteiro, visão habitual, tradicional e sempre tão querida destas gentes, reúnem-se os "velhos": vultos parados, misto de impotência e saudade, de olhar no vazio, encostados na esquina estratégica, feita miradouro e centro de convívio; deixam que o vento os envolva segredando-lhes ao ouvido as tantas peripécias que foram as constantes duma vida dura e intensamente vivida.

Imagens que observo, imagens que são vida (também a minha), quadro pintado a cores do arco-íris de fundo nebuloso a pronunciar a borrasca que se aproxima...

Mas afinal que foi feito daquele pescador rude, tisnado pela intempérie, daquele homem valente que enfrentou titanicamente, lidimo "lobo do mar", monstro encapetado, ora revolto, ora manso, no frágil batel... Qual pauzinho de brinquedo sobre as ondas?

Onde está este homem feito para o mar? (Sabia-o antecipadamente por instinto, por tradição... Porque lhe corria nas veias a " seiva" do mar salgado. Deu a sua vida ao mar, nasceu, cresceu, envelheceu no barco... Tem as faces queimadas e os ossos corroídos pela salitra.

Hoje, este "lobo do mar" não é mais do que uma história do "era uma vez"; quem o poderá imaginar vendo-o ali parado, impotente... Mas foi uma das feras do oceano.

Languidamente desperta, levanto o olhar para o outro lado da rua e como noutro qualquer formigueiro piscatório vejo e sinto as ruas impregnadas de cheiro a maresia e peixe, as crianças desleixadamente soltas e descalças, sujas e ranhosas. Nas soleiras das portas há mulheres fazendo meias e segredando da vizinha à vizinha do lado. Há roupa estendida ziguezagueando nas vielas apertadas.

Atiro novamente com o olhar para os lados do mar, lá está ele perscrutando o horizonte imenso do mar sem fim que, qual criança incansável, sempre torna à praia, meigo como o cão aos pés do dono, vindo baloiçar-se no barco voltado sobre a areia.
 
Que segredos espera ele ouvir trazidos pelo borbulhar da "babugem"?

Serão as imprecações vomitadas com raiva àquele mar tantas vezes odiado nas noites de tempestade?

Mas... Lá fica ele, olhando sem ver um bando de gaivotas que voluptuosamente voltejam em redor dos restos de peixe deixados pelo último barco.

Sinto um aperto no peito perante esta contemplação!

É que correm-me nas veias uns laivos de seiva de mar salgado... Herdei-a do meu avô que não conheci... Sei (sinto orgulho) que foi um "Lobo do Mar".

 

Fernanda Araújo

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