Voz da Póvoa
 
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Camilo

Camilo

Opinião | 13 Fevereiro 2020

Numa fase avançada da sua vida, entre 1873 e 1890, Camilo Castelo Branco frequentou assiduamente a Póvoa. Primeiro por recomendação médica, depois pelo jogo, pela diversão e pelo convívio. Hospedava-se muitas vezes no Hotel Luso-Brasileiro em cujo café costumava escrever. Foi cliente dos diversos botequins que então existiam onde o jogo e as bailarinas espanholas imperavam. Consta que Camilo cedia às duas tentações.

Na Póvoa chegou mesmo a alugar casa no Passeio Alegre e na Rua da Junqueira. Nas suas estadias tinha também a oportunidade de conviver com várias figuras ilustres. Em primeiro lugar com o juiz José Maria Teixeira de Queiroz (pai de Eça de Queiroz) a quem ficara eternamente grato pelas visitas e conselhos jurídicos quando esteve preso na Cadeia da Relação, no Porto. José Maria Teixeira de Queiroz que era o juiz titular do processo pediu escusa para assim ficar livre de aconselhar Camilo na sua defesa.

Privou também com o poeta de Aver-o-Mar, Gomes de Amorim, e foi frequentador do Solar dos Carneiros a convite do visconde de Azevedo. Foi também cá que viu morrer Manuel, filho de sua mulher, Ana Plácido, que Camilo tinha como seu.

Por tudo isto, a Póvoa de Varzim tem uma dívida para com Camilo que não ficou saldada com a toponímia de uma rua secundária.

A genialidade da escrita de Camilo, a que os programas escolares dedicam tão pouca atenção, revela-se não só nas grandes obras, mas também nos artigos de jornal e até nas suas cartas, seja qual for o assunto. Vem isto a propósito de um livro, há uns anos, editado pela Asa, sob o título “Um animal de quatro cartas”. Tem um divertido prefácio de Vasco Graça Moura e gravuras de Alberto Péssimo. As cartas – dirigidas ao escritor e amigo Adelino das Neves e Melo, ex-comissário de polícia em Coimbra - foram escritas entre Março e Abril de 1886. Não resisto a transcrever alguns trechos.

“Meu Prezado amigo, se for capaz de ler esta carta sem se rir está V.Exa. à prova do humorismo indígena. Os meus médicos, suspeitosos de que as minhas pernas vão paralisar mandam-me dar passeios a cavalo. Eu tenho um...mas já não me atrevo a montá-lo. Aconselham-me a equitação em burro, pacífico, sem manhas nem erotismos muito violentos. É impossível encontrar no Minho um burro em tais condições, porque alguns que ainda existem são abades. Mandaram-me procurá-lo no campo de Coimbra, onde permanece a raça do burro espirituoso e meio académico da Mealhada e dos Fornos...Pergunta-me agora V. Exa em que ponto da carta lhe cumpria rir-se? É na estouvisse de o ir distrair das suas leituras pedindo-lhe que me compre um burro...De V. Exa, velho amigo e obrigado, Camilo Castelo Branco”.

Dias depois nova carta: “Vejo que é mais fácil encontrar aí e aqui uma dúzia de viscondes do que um burro regular. Talvez se desse a evolução darwinista. A gente vê passar o visconde e não vê o burro incluso. Requer-se o olho cientifico, experimental que V.Exa não tem nem eu....O burro queira V.Exa enviar-mo por via férrea....terá a bondade de me avisar o dia em que o ilustre peregrino chega a Famalicão para as autoridades o cumprimentarem na gare.”

Eis que o burro chegou: “Cá está o onagro. Não o posso ver porque estou de cama com reumatismo; mas ouço-o ornear valentemente. Desde Famalicão até aqui, não obstante ter passado mal a noite, revelou fúrias lascivas don Juanescas a cada fêmea que encontrava. Logo que chegou investiu para dois garranos que tenho...Meu filho Nuno veio dizer-me à cama que não consentia que eu o montasse (o burro) enquanto lhe durasse a crise erótica. Assim farei para não ser vítima de paixões que me escangalharam a mim sem ser burro de todo.”. Por fim o burro foi devolvido à procedência. “Ele fez gemer os arames do telégrafo e prometia fazer-me gemer com costelas fracturadas...”.

João Sousa Lima

 

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