Voz da Póvoa
 
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Ao Poveiro Não Se Põe a Pata em Cima

Ao Poveiro Não Se Põe a Pata em Cima

Opinião | 11 Fevereiro 2021

Esta mais que provável última crónica-conversa vem repleta de experiências de cariz nitidamente pessoal, mas pretende extravasá-lo.

Ora ia nos oito/nove anos e atravessávamos umas bouças para irmos à ceia de Natal aos meus avós maternos. Um primo zupou-me e queixei-me ao avô comum que se limitou a um “Faz na mesma!...”. No dia seguinte, pelo almoço, já ele sangrava pelas duas narinas. Gabarolice, caro leitor/leitora, não caberá aqui, asseguro.Passados vinte anos, o pai do rapaz, meu tio, arrecadou-nos os documentos comprovativos de propriedade de um naco de bouça por cinquenta contos e aprestava-se para o vender ao dono de uma fábrica contígua à dita por …mil contos. Finório!… Detectada a trafulhice, ameacei-o, por escrito: “Sábado vou aí e ou me devolve os papéis ou rebento-o, seu trafulha!” (era o linguajar da época). Devolveu-os com o protesto: “És um malcriado, vê-se mesmo que és poveiro!…” Sem o saber, estava a autenticar-me a sina: escassos meses antes, tinha-me, abençoadamente, mudado para a Póvoa, livrando-me do “meio-raça-momento” comtiano que a todos condiciona. Seja: sorte ter-me o destino permitido frequentar o Liceu Eça de Queirós e salteado todos os escalões do Varzim Sport Clube.

Fujo ao tema? Não, não!... Outra: entregávamos (por sinal por minha mão, capitão de equipa dos juvenis varzinistas, ó Rúben, Zé-António, Joãozinho…) a faixa de campeão nacional ao Porto. O nosso treinador, Carvalhinho, achou por conveniente, mais uma vez, pôr-me a defesa central, porque nos dois jogos anteriores tínhamos empatado. Recusei-me, o meu ego era maior que eu próprio, queria sobressair, mais a mais estava apontado aos juniores portistas do ano seguinte. Calcula o leitor/leitora o que aconteceu?! O treinador, indignado com a desautorização, saiu do barco e postou-se na bancada. Ganhámos 2-1, com um golo meu que jamais esquecerei e rebentava de euforia. Pois!... Houvesse quem me tivesse, na hora, pregado dois bons “bufardos” no focinho, grande mestre teria sido! Logo a ele que tanto nos aturou!

Aqui chegados, ao futebol (desporto formador do carácter, dantes como agora, deixa-me rir!...), salto outros vinte anos e vamos ali ao campo do Aguçadoura a um jogo de veteranos. Tínhamos ganho na semana anterior a uns pernetas e eu fizera quatro golos, sendo certo que Miranda, e Isac Moita (os nossos melhores jogadores), nesse jogo não fizeram senão dois. Os “titulares” eram, por norma, os mais assíduos aos jogos e eu, como aparecia de vez em quando, fiquei no banco no jogo seguinte. Ao intervalo entravam todos. Mas, de forma insólita e antes de dada a constituição da equipa, aconteceu esta cena, diria… comovente. Na distribuição das camisolas, o colega António Lima Pereira tomou uma iniciativa: “Esta camisola (número 10!) é sua, Alcino, fica-lhe bem”! A nossa confiança restringia-se à presença nos jogos, acrescente-se.

Ao intervalo perdíamos por 2-0, ali no campo de treinos, mas o nosso orientador de equipa, só porque a velhice era um posto, deu numa de treinador e segredou-me: “Olha, espera um bocado e depois entras!...”

Acto contínuo, desequipei-me, tirei as botas e saí… Até hoje.

Vinte anos volvidos, vejo agora claramente que “O que em mim senti tinha desatado nesse momento a pensar” que “A vida, devagar, leva-nos tudo e deixa-nos na boca um gosto amargo de ser mudo.” (Torga)

Ala, Ala, Arriba… Companheiros!
                                                                                            
por: Alcino Santos

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