Voz da Póvoa
 
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A salto de barco

A salto de barco

Opinião | 13 Agosto 2020

Um Poveiro muito ligado às actividades náuticas, já desaparecido do mundo dos vivos, assegurava a veracidade de uma desconhecida aventura protagonizada por três jovens da Póvoa. Relatava com ironia as passagens mais pitorescas, mas, respeitava o silêncio a que os intervenientes se remeteram para evitar a chacota pública. Guardadas cautelas por não ter sido possível verificar os factos, aí vai a estória.

No início da década de 70 do século XX, Portugal estava isolado internacionalmente, muito por causa da política colonial. A guerra na Guiné, em Moçambique e Angola fazia inúmeros feridos e mortos. O serviço militar obrigatório e as limitadas perspectivas profissionais levavam muitos a sair do país “a salto”.

À semelhança de tantos outros, também três jovens poveiros se recusavam a aceitar o futuro que lhes estava reservado. Porém não tinham dinheiro para pagar a exorbitância que os “passadores” exigiam. A pequena motora deixada à guarda da família pelo tio de um deles que “andava ao bacalhau” deu o meio para fugir por mar. Conceberam então um arrojado mas ingénuo plano de fuga com destino a França.

A horas mortas, no maior segredo afinaram o velho motor, calafetaram juntas, armazenaram víveres, água e combustível. Não providenciaram qualquer dispositivo auxiliar de navegação, apenas um pequeno rádio de onda média a pilhas e um “Mapa de Estradas da Europa” da Michelin que pensavam ser suficiente para a navegação costeira que os escassos conhecimentos de navegação permitiam. O plano era navegar com a costa espanhola sempre à vista do seu lado direito, orientados pelo mapa de estradas, até atingir França onde atracariam ao primeiro porto que se lhes deparasse.

Chegado o dia aprazado zarparam do nosso porto discretamente pelo meio-dia com a costa a estibordo e o mapa de estradas aberto. Navegando lentamente passaram Viana ao cair do dia, altura em que começou a formar-se neblina que, não perturbou a navegação até à foz do Rio Minho. À vista de Santa Tecla com a neblina a adensar-se em nevoeiro, saudaram a entrada em águas espanholas. No rádio já só se ouviam emissoras em castelhano. O nevoeiro tornou-se espesso e as luzes de Baiona foram as últimas que conseguiram ver do lado direito. Por precaução, reduziram a velocidade até que pelas onze horas da noite foram surpreendidos com a luz de um farol filtrada pelo nevoeiro vinda do lado esquerdo. Algumas milhas mais adiante, outro farol de novo a bombordo. Sem saber estavam a passar perigosamente perto das ilhas Cies e Ons em frente às rias galegas. Instalou-se a confusão entre os improvisados marujos.

Pararam o barco e após alguma discussão decidiram, pouco convictos, tentar “recolocar” as luzes do seu lado direito. Cegos pelo nevoeiro guinaram à esquerda por umas horas. Era já dia quando o nevoeiro se dissipou nada se avistava para além do imenso azul agitado pelo vento. O rádio em silêncio e o velho motor do barco a dar sinais de fadiga. Fizeram uma pausa para se alimentarem e arrefecer o motor. Seguiram-se três dias em que o funcionamento do motor alternou com longos períodos à deriva. Empurrados por ventos e correntes estavam em pleno Mar Cantábrico. Entretanto as provisões diminuiram drasticamente e o barco começava a meter água. Ao quarto dia, pela manhã cedo, o motor silenciou-se definitivamente, temeram o pior até que o rádio lhes restituiu esperança ouviram emissoras em francês. Às quatro da tarde foram avistados por um arrastão francês que os recolheu. A bordo ainda viram ao longe a motora a afundar-se lentamente. Conseguiram contar ao mestre a sua situação de clandestinos, em terra foram confiados à segurança social que lhes providenciou alimentação, vestuário e alojamento transitório. Passados dias depois de cada um ter seguido o seu caminho, um semanário da localidade noticiava o salvamento em mar alto de três “resistentes” políticos Portugueses fugidos à ditadura. Anos mais tarde, restaurada a democracia e acabada a guerra, voltaram à Póvoa guardando segredo da fuga de barco com a ajuda de um mapa de estradas!!

João Sousa Lima

 

 

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