Durante décadas, o humor português conviveu com a política de forma inteligente, crítica e civilizada. Não era preciso despir presidentes nem urinar em cartazes para provocar o riso e, ao mesmo tempo, fazer pensar.
Se o parlamento português fosse uma galeria de grandes humoristas, Nicolau Breyner seria o PSD: afável, popular, com sentido prático e bom senso de palco. Herman José, com a sua irreverência sofisticada, encaixaria no PS – um centro-esquerda provocador mas institucional. Mário Viegas, culto e combativo, seria o PCP, pela intensidade e verticalidade. Raul Solnado, com a sua ternura desconcertante e moral humanista, seria o CDS que já não temos: conservador, mas civilizado. Todos eles fariam humor – mas nunca deixariam de se respeitar.
Hoje, algo mudou. O novo humor político, protagonizado por figuras como Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques ou Bruno Nogueira, deixou de satirizar com ética e com linhas vermelhas. Passou a fazer o que a extrema-direita faz com discursos inflamados: atacar as instituições, os rostos que as representam e até a própria ideia de serviço público. Vestiram a capa da ironia para alimentar a narrativa do “anda tudo a gamar”, “são todos iguais”, “não se aproveita ninguém”, “isto é gozar com quem trabalha” – chavões que, curiosamente, são indistinguíveis dos que se ouvem nos comícios do Chega.
O exemplo não é novo. Em 2011, no auge de uma das maiores mobilizações populares da década, os Gato Fedorento viajaram até aos Estados Unidos para gravar um sketch com Steven Seagal, numa sátira aparentemente inofensiva, mas que reduzia a manifestação popular a um capricho nacionalista e folclórico. Era o início de um novo ciclo: o humor como descompressão sem consequência, desvalorizando o protesto e ridicularizando o inconformismo. O riso substituiu a indignação. E isso teve um preço.
É legítimo e necessário rir da política. É até saudável. Mas quando o humor recorre repetidamente à humilhação pública, à exposição cruel, ao julgamento físico e pessoal – como nas piadas sobre as alterações de aparência de Joana Amaral Dias, ou na cena grotesca de um presidente nu sob uma gabardine – deixa de ser humor e torna-se ressentimento travestido de sátira. É uma indignação comediante que deixou de entreter e passou a galvanizar a desconfiança. Que diferença há entre um cartaz do Valentim Loureiro a ser urinado num programa de humor e o que alguns deputados da extrema-direita sussurram nos corredores da Assembleia? Apenas uma: o palco.
Há um Chega com assento parlamentar. Mas há também um ‘Chega do entretenimento’, mascarado de sarcasmo libertador. Os humoristas de hoje têm um poder político que os de ontem recusavam por decência. Mário Soares e Freitas do Amaral – vivos e bem lúcidos nos seus últimos anos – nunca aceitaram participar nesses espaços de Ricardo Araújo Pereira e companhia, mas foram entrevistados com gosto e dignidade por Herman José e Nicolau Breyner. Não por sobranceria, mas porque sabiam distinguir crítica de achincalhamento, liberdade de expressão de espetáculo cruel.
O riso é uma arma, mas pode ser também um anestésico perigoso: embala-nos na ideia de que nada é sério, nada é digno, tudo é motivo de escárnio. É essa cultura do cinismo total que abriu espaço para o populismo bruto, para o anti-intelectualismo e para a destruição da autoridade democrática. Sei que quem está no espaço público sente que tem de dar pancadinhas nas costas a estes humoristas. Eu não. Não me revejo nessa gente – e não escondo o desconforto. Afinal, com ou sem intenção, cumpriram a vontade do Chega: fazer da política um circo e dos políticos uma anedota permanente.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor