Voz da Póvoa
 
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A Partilhar o Livro Entre Autores e Leitores há 25 Anos

A Partilhar o Livro Entre Autores e Leitores há 25 Anos

Local | 23 Fevereiro 2024

 

A invenção da escrita pode muito bem ter resultado da invenção do amor. Para o Daniel Filipe, “entre zunidos de conversa inventaram o amor com carácter de urgência, deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia”.

O Correntes d’Escritas ao celebrar 25 anos de encontros de escritores de expressão ibérica, se não inventou nada, teve pelo menos a primazia de ter sido o embrião de tantos outros festivais literários que em cada canto do país floresceram. Se não inventou a escrita, convidou em cada ano quem fosse capaz de a recriar.

A Corrente que começou na Biblioteca Municipal e continua a ser d’Escritas no Cine-Teatro Garrett. Uma viagem que foi vivida bem de perto em todo o seu percurso pelo Vereador da Cultura da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, Luís Diamantino Carvalho Batista, que nos recorda os primeiros passos do evento, o seu crescimento e os pilares onde assentou todo o seu sucesso: “Tudo o que deve ser feito, quer-se bem feito. Digo isto desde o primeiro momento das correntes e continuamos com essa máxima. Nós estamos muito identificados, muito ligados ao Correntes d’Escritas, este encontro é também aquilo que os leitores estão à espera. Temos sempre novidades, formas de chamar os leitores para mais um livro, mais um autor, mais uma peça de teatro, para uma exposição, um documentário, concertos, estamos sempre em crescendo. Para além disso, também temos formação de professores no ‘Correntes em Rede’. De alguma forma, estamos a apoiar a classe que participa em grande número. Este ano, ultrapassamos a centena de professores a participar nesta formação que é dada por vários escritores. Este ano, incluímos a tradução, ou seja, haverá várias mesas dedicadas à tradução e ao diálogo entre tradutor e escritor, tradutor e o autor. Podemos dizer que é mesmo uma questão filosófica, o tradutor que é ao mesmo tempo um escritor que cria outra obra noutra língua, mas também pode trair o autor do livro que traduziu”. 

Tocou num assunto que nos leva para a Inteligência Artificial. Há quem coloque a possibilidade e as editoras já assumiram que a tecnologia veio para ficar, e acabará por ser usada. Não há aqui um afastamento da palavra que interroga ou precisa de uma outra que a explique pelo lado emocional e não pela frieza de um dicionário acumulado dentro de uma máquina? “A Inteligência Artificial não cria, conjuga, selecciona, junta aquilo que foi criado ao longo dos tempos. Digamos que é um repositório de muita coisa, e a Inteligência Artificial selecciona. Com certeza que uma coisa é a emoção que é transmitida pela inteligência humana, outra coisa é seleccionar friamente os dados que se encontram numa caixa, num invólucro, num repositório”:

Mas, para Luís Diamantino há outros medos maiores: “A mim não me aflige tanto a Inteligência Artificial, aflige-me mais a censura que se está a fazer neste momento aos livros, à criatividade. Ao promover-se a censura, já estamos a fomentar a auto-censura do escritor. O escritor sabe que se escrever isto ou aquilo vai ser regulado por certas camadas sociais que estão contra o que escreve, sobre aquilo que escreve, mas não deve escrever. Além disso, ainda me preocupa muito mais, termos textos literários extraordinários e que de repente são truncados porque tem uma palavra que não pode ser dita, uma referência que contraria os cânones actuais. Isto é censura”.

Entre outras razões, é por isso que a palavra liberdade está no foco das Correntes deste ano? “Em primeiro lugar, estamos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril, e se há algo que esta revolução nos trouxe, foi a liberdade, sobretudo a liberdade de pensamento de expressão, podermos dizer com responsabilidade aquilo que queremos. Perante estes factos, tivemos que pegar no sentido da palavra liberdade. Hoje, temos que ter a consciência que a palavra está a correr o perigo de ser amordaçada, diria mesmo sufocada. É uma censura sub-reptícia que vai crescendo e tomando conta de tudo. Penso que o grande desafio para os escritores, é não se deixarem amordaçar e terem a liberdade de escrever o que sentem e o que querem expressar. Penso que o tema do Correntes será uma forma de se falar de liberdade. É uma censura sub-reptícia que vai crescendo, crescendo e tomando conta de tudo”.

A expressão do Pensamento Livre já Viveu Melhores Dias

 “A palavra é muito importante nos dias que correm, tanto para um lado como para o outro. Através da palavra podemos chegar ao muito mau e ao excelente, temos é que ter cuidado com o muito mau, que leva à guerra, à destruição, à intolerância, à censura. A inquisição queimava na fogueira os livros que achava que não podiam ser lidos. Regressar a essa possibilidade seria um retrocesso civilizacional”.

O Correntes d’Escritas é um baluarte na defesa da palavra e tem um papel fundamental na ideia do Plano Nacional da Leitura: “Essencialmente. Quando criámos este evento não foi para promover os escritores, mas simplesmente o livro e a leitura, a sua promoção. Penso que temos conseguido fazer isso. Aparecem cada vez mais jovens no Correntes e não será alheio o facto de levarmos os escritores a todas as escolas do concelho. Este ano, temos pedidos de escolas de Barcelos que queriam que os escritores fossem lá. Não levamos os escritores às escolas fora do concelho, mas recebemos os alunos no Diana Bar ou na Biblioteca para se encontrarem e dialogarem com escritores. Essa é a nossa proposta, é isso que temos feito ao longo do Correntes d’Escritas. É importante dizer que os jovens também podem concorrer a prémios literários no Correntes, desde o primeiro ciclo e têm-no feito. Também vamos ter uma mesa do Correntes d’Escritas em todas as freguesias, mesmo em Balasar, que achávamos que não tínhamos condições por a sede da Junta estar em obras, mas temos um auditório no Centro Paroquial que nos vai receber. Apelo para que a população acorra como tem acontecido em outros anos, em Navais, Rates ou Laúndos”.

Este ano está também associado ao evento os 50 anos da Cidade. O Correntes d’Escritas com metade da idade tem sido o seu maior promotor? “As correntes já se confundem com a cidade. Quando se fala da Póvoa de Varzim as pessoas pensam logo em Correntes d’Escritas, quando se fala do Correntes toda a gente pensa na Póvoa. Não há melhor forma de comemorar os 50 anos do que comemorar os 25 anos do Correntes d’Escritas. Quando me encontro com outros vereadores de outras Câmaras, o Correntes d’Escritas vem sempre à conversa. Nada disto é por acaso, há uma promoção muito grande não só ao nível dos escritores que cá vêm, como dos editores, agentes literários, dos tradutores, mas também da comunicação social”.

E revela: “Em 2020 foi feito um estudo de impacto mediático encomendado pela Câmara a uma empresa. Nesse ano, cerca de 30% da população portuguesa esteve exposta à mensagem do encontro Correntes d’Escritas, cerca de 3 milhões de pessoas. De acordo com este estudo o valor financeiro do espaço editorial equivale em publicidade, e estamos apenas a falar dos media que são contabilizáveis e que têm valor de publicidade, equivaleu em 2020 a 5,4 milhões de euros. Ou seja, o tempo de antena das televisões, o espaço dos jornais, das rádios, se tivéssemos de pagar, equivalia a esse valor. São contas que as pessoas não fazem, mas que não tivemos que pagar. A Póvoa ganhou através do Correntes essa visibilidade e essa notoriedade”.

O evento literário já percorreu vários palcos. Podemos prever no futuro que possa estender-se a outros espaços? “Começámos no auditório da Biblioteca onde cabiam cerca de 100 pessoas. No segundo ano, percebemos que o espaço já era pequeno e fomos para o Auditório Municipal onde tínhamos uma plateia para 350 pessoas, mas que enchia até pelos corredores, para além da fila imensa que se formava à entrada que ia até ao pavilhão municipal. Por isso, enquanto o Garrett não ficou pronto fomos para o a sala de congressos do Axis Vermar, com capacidade para cerca de 700 pessoas e mesmo assim tivemos mesas com gente de pé. Mas, a necessidade de trazer o evento para o centro era muito importante para a cidade. Termos o Correntes d’Escritas no Garrett, para além dos restaurantes que estão ali à volta, o comércio que lá existe, as livrarias que cresceram em número depois das Correntes surgirem. Quando se diz que os livros estão a desaparecer, na Póvoa nasceram mais duas livrarias”.

Para Luís Diamantino há a Póvoa antes do Garrett e depois do Garrett: “não só no Correntes, mas também com toda a actividade cultural que o espaço tem, que praticamente está todos os dias ocupado, não só com a programação cultural local, mas também com a programação nacional e internacional. Com certeza que pretendemos levar as correntes ao Póvoa Arena quando estiver concluída. Uma ou outra mesa, um ou outro acontecimento integrado no Correntes. Também sabemos quando é que há mais gente ou menos gente. Conhecemos perfeitamente como é que o público leitor reage a esta ou aquela mesa. Vamos ter aqui o programa com o Carlos Vaz Marques, o João Miguel Tavares, o Pedro Mexia e o Ricardo Araújo Pereira. Em directo para a televisão, caso estivesse pronta o Póvoa Arena esgotaria, tenho poucas dúvidas sobre isso. Nas mesas do último dia, ao sábado, podia perfeitamente acontecer a mesma coisa”.

Em cada Ano uma Conferência para a História do Encontro

“Este ano, vamos ter o Filósofo José Gil, que vai ligar a filosofia à literatura. Estou ansioso e vou gostar de perceber como será explanado o tema”.

Com tantos nomes em cima da mesa, como é que se chega à escolha do conferencista? “A programação é tratada comigo e com a Manuela Ribeiro. Logo que acaba uma edição começamos a pensar na próxima. Na Revista, sempre homenageamos um autor, este ano o tema será sobre os 25 anos do Correntes d’Escritas. A escolha do conferencista é tratada entre mim e José Carlos Vasconcelos. Conversamos e vamos sugerindo nomes, nem sempre estamos de acordo, mas chegamos sempre a um consenso. Por vezes, há potenciais conferencistas que não estão disponíveis por questões de agenda, mas deixam a porta aberta para o ano seguinte. Já tivemos aqui grandes conferencistas, estou-me a lembrar da Agustina Bessa-Luís ainda no Auditório Municipal ou do Siza Vieira já no Garrett”.

O reforço na verba do prémio Casino da Póvoa, significa um reconhecimento do principal parceiro do Correntes? “Na abertura do Correntes d’Escritas do ano passado, falei com o Dr. Elísio Vinagre que seria bom ter um prémio mais robusto este ano e ele acolheu a ideia positivamente. 25 Anos, 25 Mil euros de prémio. Sabemos que o apoio à cultura não é muito reconhecido neste país, mas o Casino tem essa sensibilidade para com o Correntes d’Escritas, aliás é o patrocinador principal, assim como a Porto Editora através do Prémio Luis Sepúlveda, as outras editoras também têm apoiado a revista literária. Para nós e para a cultura portuguesa seria importante que tivéssemos apoios do Ministério da Cultura, mas não tem surgido essa possibilidade nem programas de apoio na área deste evento”.

Ao Prémio Luis Sepúlveda podem concorrer todas as escolas. Qual tem sido a receptividade ao longo dos anos? “Todas as escolas que tenham a língua portuguesa ou espanhola podem concorrer. O prémio já foi ganho por uma escola portuguesa no Luxemburgo. Penso que é importante fazer dos professores cúmplices desse trabalho. Ou seja, perceberem que o Correntes d’Escritas também lhes pertence. Aliás isto é o que acontece com os escritores. Quando queremos que determinado autor cá venha, falamos com escritores amigos que os contactam. Os escritores apercebem-se que também são parte da organização, não são alheios, pelo contrário defendem em todo o lado e promovem o Correntes d’Escritas. Acrescentaria que, as pessoas que estão na organização nesta altura do Correntes, mudam-se todas do seu serviço para o Garrett, todos vestem a camisola das correntes, da Póvoa”.

 

O Compromisso do Correntes com a Liberdade d’Escritas

 

A Póvoa começa a aparecer na escrita destes autores que passam pelo Correntes: “O Mário Delgado Aparaín escreveu a Póvoa nos seus contos, mas também o Sepúlveda e outros escritores o fizeram. Para além do Rui Zink, Ivo Machado, Maria do Rosário Pedreira e outros que sempre nos ajudaram, o Dr. Laborinho Lúcio veio uma primeira vez e apaixonou-se pela Póvoa, mesmo fora do Correntes d’Escritas aparece aí. Laborinho Lúcio para além de escrever sobre a Póvoa predispôs-se a fazer teatro, e foi tão boa a peça apresentada na casa Manuel Lopes, que este ano a pedido de muitos leitores, vamos repetir. O espaço é pequeno e só podem assistir cerca de 40 a 50 pessoas, daí a necessidade de repetir a peça representada pela Raquel Patriarca, Laborinho Lúcio, Luís Spranger e outros escritores”.

O Correntes d’Escritas mais do que viver um sonho foi acreditar nele? “Sou muito optimista, acho que se nos empenharmos e dedicarmos àquilo que estamos a fazer, vamos ter êxito. Fui das poucas pessoas que desde o início acreditei neste projecto, lutei e dei a cara por ele. Quando as coisas correram mal também dei a cara. Quando as coisas correram bem, dentro do possível, tentei não aparecer. Sempre entendi que o Correntes d’Escritas iria ter os êxitos que tem agora. Temos que ter sempre uma visão para além do momento presente. Uma visão ampla, alargada, sobretudo no aspecto cultural perceber aquilo que é importante para a nossa comunidade. Entendo que na cultura não podemos ter uma visão afunilada. Tanto aposto fortemente no Correstes d’Escritas, no Festival Internacional de Música, como num festival de Folclore ou num encontro de Bandas Filarmónicas, tudo é importante e faz parte da cultura de um povo, da nossa cultura. Não podemos viver só dos livros, temos que viver também das nossas tradições e a tradição faz a cultura. A Póvoa tem uma força associativa que poucos concelhos deste país se podem orgulhar. Por isso, apoiamos e trabalhamos com as associações. É importante perceber esta visão alargada da cultura”.

 O Correntes já construiu a sua própria estrada, já não há forma de parar, há sempre uma nova proposta: “Para além das mesas que terão versos de canções de contestação, contra o Estado Novo e após o 25 de Abril, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, entre outros, vamos ter este ano 120 autores, de 16 nacionalidades. Temos a Hélia Correia e o Germano de Almeida que são Prémio Camões, entre outros escritores premiados que vão estar aqui. Temos 13 livros finalistas do prémio Casino da Póvoa. Entre os seus autores, temos escritores portugueses, espanhóis, brasileiros, chilenos, mexicanos, angolanos, moçambicanos”.

Aqui se vê a importância de uma boa tradução quando um livro concorre a um prémio literário: “Fui professor de Francês e gosto de ler os livros destes autores na sua língua. O escritor tem frases idiomáticas que não são as mesmas que dizemos na nossa língua. O escritor joga com as palavras, com a tradição oral do país. Uma coisa é ler na língua original, uma tradução mesmo muito boa é sempre outro texto”.

Na semana do Correntes d’Escritas, se tivesse que lançar um repto aos leitores o que diria? “Primeiro vir ao Correntes. Depois, que mantenham o espírito aberto, que sejam tolerantes, que se ponham no lugar dos outros antes de reagir, e que respeitem sobretudo a literatura. A cultura é um espaço de liberdade, aproveitem porque esse espaço na vida real está a tornar-se cada vez mais exíguo, temos que estar atentos”.

Por: José Peixoto

Fotos: Rui Sousa

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