Sem sardinha no pão e chaves na mão, há um São Pedro pescador de almas em Rates. A sua origem é remota e desconhecida, mas terá morrido em Rates onde se teria alojado num antigo convento, em penitência. Entre a história e as estórias se contam, terá sido o primeiro bispo da diocese de Braga, na altura com um alongado território. O santo Pedro de Rates é celebrado naquela vila do concelho da Póvoa de Varzim, a 26 de Abril, data em que terá sido mártir dos romanos.
Quisemos conhecer melhor o santo que se encontra na igreja Românica de Rates que, recentemente, recuperou um lugar no trono da arquidiocese de Braga que foi seu durante muitos séculos, mas de onde tinha sido destronado nas últimas quatro décadas.
Pároco de Rates há 45 anos, mas natural de Forjães, Manuel de Sá Ribeiro, revelou-nos que, “a crença no São Pedro de Rates é muito antiga, foi por muitos séculos padroeiro da diocese que nessa altura era extensíssima, abarcava o território de Trás-os-Montes e do Porto. Dizem que a sua história é uma lenda, mas toda a lenda tem um fundo de verdade. Em Compostela, é a tese que os espanhóis sustentam – e que ninguém lhes diga o contrário porque pode acabar ‘chacinado’ – Santiago veio evangelizar e terá escolhido sete Barões ilustres, ordenou-os Bispos e mandou-os evangelizar. Um deles era um Barão chamado Pedro que saiu de Compostela rumo ao sul, calcorreando terras e montes até se instalar em Braga onde se tornou o primeiro Bispo. Isto seria dos tempos apostólicos. Como foi o primeiro, tornou-se o Primaz das Espanhas (assim se chamava a Península Ibérica), só mais tarde recebeu o título de arcebispo de Braga, intitulado também de metropolita, como agora, D. José Cordeiro, prefere. Ou seja, o actual arcebispo é o metropolita, o primeiro que ordena a pastoral da metrópole de Braga, mas é também Primaz das Espanhas, um título que se manteve porque a importância de Braga em relação a outras dioceses quer de Portugal quer de fora era notória. Outrora até havia mais um título que o Arcebispo D. António Bento Martins Júnior, natural de Arcos, usava, Senhor e Senhor de Braga”.
Quanto à origem do padroeiro de Rates, “há muita confusão, já alguém afirmou que ele era daqui natural, mas nunca constou que fosse. Que ele veio até Rates e que o seu pontificado foi importante na diocese, não há dúvida. Ser o São Pedro de Rates, este de Rates não é a origem, mas a finalidade. Ou seja, ele terá falecido aqui. Há uma tese forte que quer atribuir esta santidade a este homem de nome Pedro arcebispo, tese que o falecido professor Doutor Avelino de Jesus Costa apresentou e publicou. O arcebispo D. Pedro, na altura da reforma da igreja bracarense, ter-se-á alinhado ao antipapa, mas inadvertidamente. Quando caiu em si, que o Papa verdadeiro não era aquele que ele julgava ser e propunha, terá dito – eu já não sou digno de continuar à frente da diocese. E retirou-se da sede que era Braga para um limite da diocese que seria aqui em Rates onde havia um convento muito importante e, aí, no meio de grande penitência morreu com fama de santidade. Esta é a tese do professor”.
Para Manuel de Sá Ribeiro, o facto de o santo ter morrido em Rates, “para distinguir do São Pedro Apóstolo ou de qualquer outro, o povo aclamava-o de São Pedro de Rates. Segundo a estória, em alta idade média forjou-se o que é hoje tido como a lenda. São Pedro seria o arcebispo em Braga, estávamos no século II e a perseguição dos romanos aos cristãos era muito forte porque queriam obrigá-los a serem idólatras, deixar o cristianismo e passar a adorar os ídolos, inclusive o Imperador Romano. São Pedro, como outros cristãos, fugiu para um extremo da diocese, para Rates, e um dia em que estava a celebrar, vieram os soldados do imperador e mataram-no, destruindo a própria igreja, com o objectivo de acabar com o cristianismo. Diz essa mesma estória que um eremita de nome Félix, que vivia no monte fronteiriço, que conhecemos bem, viu uma luzinha de noite que o terá despertado, desceu o monte e foi ver. Encontrou tudo desfeito, desenterrou o corpo e guardou-o com toda a devoção. Esta estória é para firmar precisamente a primazia de Braga sobre outras dioceses. Mas, há outras versões da história”.
E acrescenta: “Uma coisa é certa, esta nossa igreja românica é do tempo do conde D. Henrique, que no ano 1100, com a sua esposa Dona Teresa, encontraram desfeita uma igreja (cujos restos remontam ao tempo do baixo Império Romano). Sobre essa igreja pré românica, possivelmente visigótica, sueva, não sabemos, da qual um ou outro elemento se conserva no Núcleo Museológico e alguns estão integrados na actual igreja, foi destruída de facto”.
São Pedro de Rates padroeiro da arquidiocese de Braga
“Em 1985, o arcebispo Primaz D. Eurico Nogueira, que era formado em direito, mas gostava da história e contava muitas estórias, firmou-se na tese do professor Avelino Costa, e concluiu que São Pedro de Rates era uma lenda, que não sabia se existiu ou não e que era melhor colocá-lo de lado, e pôr como padroeiro da diocese um que se sabe, que historicamente existiu, o São Martinho de Dume, que foi também arcebispo em Braga. Com esta precipitada conclusão destronou o São Pedro de Rates que estava na cadeira há séculos”.
Como reagiu o pároco que desde 1978 exercia na paróquia de Rates? “Não fui ouvido nem achado, também não tinha que ser. Certo é que não mandaram nenhum decreto para que fosse retirada a imagem da igreja ou dada qualquer outra ordem. Eu não deixei de continuar a celebrar e a evocar São Pedro de Rates como nosso padroeiro, como até hoje o faço e farei pelo tempo que Deus me quiser deixar estar aqui e o arcebispo também. Nunca deixou de ser o nosso padroeiro, celebrámo-lo a 26 de Abril, uma data que vem de tempos remotos, possivelmente dia da sua morte. São muito poucos os santos que se celebra o seu nascimento natural, mas celebra-se sempre a sua partida para o Céu. Recordo que S. João Baptista celebra-se a 24 de Junho, o nascimento, mas celebra-se a 29 de Agosto o seu martírio e a sua partida para o céu”.
Rates nunca deixou de celebrar o seu São Pedro: “Fazemo-lo dentro da igreja com o sagrado Lausperene que vem já de tempos imemoriais. No dia 25 de Abril, fazemos a abertura, procurando dar-lhe a dignidade da solenidade e no dia 26 paramos um pouco as adorações e celebramos a missa do padroeiro. Antigamente, era dia santo de guarda em toda a vastíssima diocese. Há certos mitos que perduram – que ninguém ousasse trabalhar no Dia de São Pedro de Rates, nem deitavam galinhas porque os ovos não geravam, não se cozia pão e se alguém ousasse fazer algo nos campos, ratos e outros bichos destruíam tudo – ou seja, nem pensar em trabalhos. Diziam que o São Pedro era vingativo, mas é claro que eram lendas que circulavam entre o povo. Eu hoje tento incentivar os paroquianos, quem estiver aqui, se possível faça dia Santo. E celebramos a eucaristia como se fosse num domingo, com a glória, com o credo, com as três leituras. Procuramos dar relevo ao padroeiro. Direito ao descanso e a honrar o santo com a vinda à missa. No fundo é agradecer a quem lhe deu esse descanso”.
Da tristeza causada pela perda do título de padroeiro da arquidiocese de Braga à sua recuperação em Abril foram décadas de espera, mas que segundo Manuel de Sá Ribeiro valeram o esforço: “Alguém julgou saber muito de história, mas a história não vive sem a estória, e portanto, não é assim de uma penada que um senhor importante dá que é um facto consumado. São Martinho de Dume continua a ser o padroeiro da diocese, mas entretanto um movimento que já vinha a fazer-se ouvir no tempo de D Jorge Ortiga, continuou com D. José, o actual arcebispo de Braga, que enviou a Roma para o Culto Divino dos Santos, uma lista de santos ou santas da diocese, os quais também não têm consistência histórica como São Pedro de Rates, mas estória, e são vários. De maneira que a Santa Sé analisou os documentos e aprovou o regresso ao santoral bracarense. Confidenciou-me o D. José, como o São Pedro de Rates tinha sido o padroeiro da vastíssima diocese de Braga, a Santa Sé lhe terá dito – uma vez que Ele foi centenas de anos o padroeiro – atribuímos-lhe agora a designação de padroeiro secundário da Arquidiocese de Braga. D. José afirmou logo que sim e isso dá-me um bocadinho de ‘gozo’ porque ele foi de certa forma reabilitado. Não é o padroeiro principal, mas isso não é problema porque, contesto agora eu, o padroeiro principal da diocese já estava entregue há muito a Santa Maria que é a figura que está na Sé de Braga. O povo chama-lhe a Senhora do Leite, mas é Santa Maria nossa Senhora rainha de todos os santos. Numa linha de sequência, o segundo será São Martinho de Dume, e o terceiro São Pedro de Rates. Só espero que nos façam as orações próprias num livrinho dos santos, agora que a Santa Sé aceitou. Não será já, mas estou a contar que brevemente venha o missal com o lecionário dos novos santos bracarenses que a Santa Sé aprovou. Agora, é dar continuidade ao culto”.
Com Fé se fez Valer uma Razão Histórica
Num outro lugar nasceu, mas o seu nome São Pedro de Rates ficará eternamente ligado à terra que se fez lugar de gente laboriosa. Hoje, é uma vila presidida por Paulo João, que nos contou que, “contra a vontade do povo de Rates e à sua fé, em 1985, por decisão da Santa Sé e por proposta da Diocese de Braga, o São Pedro de Rates deixou de fazer parte do santoral bracarense. Isso foi motivo para uma grande tristeza do povo de Rates, mas nós nunca deixámos de acreditar e ter fé, tanto é que nunca deixámos de comemorar a 26 de Abril como o Dia de São Pedro de Rates, juntamente com uma iniciativa que tivemos logo após essa destituição, que foi erguer um monumento a São Pedro de Rates e que é demonstrativo da nossa fé e ao mesmo tempo da nossa indignação pela, para todos nós, injusta decisão”.
Como se chegou à conclusão que tinha sido um erro? “Houve um estudo feito por Braga com a liderança muito forte do cónego José Paulo Abreu, com a cooperação óbvia do arcebispo D. José e a colaboração do nosso conterrâneo, o Bispo Auxiliar do Porto, D. Roberto Mariz. Foi possível de facto demonstrar que essa destituição foi injusta, há provas de que o culto a São Pedro de Rates é remoto e portanto, sob proposta da arquidiocese de Braga a Santa Sé reconheceu, finalmente, que foi um erro destituir o São Pedro de Rates do lugar que ocupou durante séculos, e voltámos efectivamente a contar com o nosso padroeiro no santoral bracarense. O São Pedro de Rates é agora reconhecido como santo de altar com um dia próprio de comemoração”.
Há os caminheiros e os peregrinos que fazem o caminho de Santigo, seria interessante perceberem quem é realmente São Pedro de Rates? “Reza a história que ele era precisamente discípulo de Santiago. São Pedro de Rates tem imagem na lateral esquerda do altar-mor da igreja românica de Rates e é diariamente visitado pelos peregrinos que por lá passam porque efectivamente há essa ligação de São Pedro de Rates a Santiago, que o teria tornado bispo da arquidiocese de Braga”.
Como é que o presidente da Junta vê todo este arrastar, esta luta para que seja conservada a igreja Românica de Rates, classificada como monumento nacional, mas que se encontra bastante degradada? “Vejo com muita preocupação. A Câmara Municipal, que será responsável por parte da execução da obra, já aprovou a minuta do protocolo a estabelecer e estamos a aguardar que venha assinado pelas entidades estatais competentes para que a Câmara possa abrir o procedimento do concurso para a execução da primeira fase destas obras, que essencialmente têm a ver com a limpeza exterior das ervas, a recuperação de vitrais e a substituição do telhado”.
A proximidade da Junta com o pároco, que é o mesmo há muitos anos, permitiu um conhecimento dos problemas de degradação do templo: “temos uma relação muito boa, não só com o senhor padre como com os movimentos da igreja. Estamos sempre disponíveis para colaborar e a preocupação é recíproca, estamos em sintonia. Temos que aguardar e tentar que ainda este ano as obras sejam executadas, mas a decisão está do lado do Estado e não da autarquia”.
Quanto à celebração do São Pedro de Rates, “nunca houve festejos pagãos. O dia 26 de Abril é totalmente dedicado a cerimónias religiosas sem qualquer procissão. Enquadra-se numa outra celebração que é a do Corpo de Deus. Sendo apenas religiosa, acrescentaria que somos visitados nessa data, essencialmente, pela beleza dos tapetes de flores naturais e todo o percurso da procissão. Foi isso que projectou esta cerimónia em São Pedro de Rates”.
O Santo António é uma festa que reúne as duas componentes, a animação pagã e a religiosa: “É coordenada por uma comissão de festas que tem uma duração de três anos. Alia a questão pagã com grandes festividades, como concertos e a parte religiosa da procissão, do sermão ou celebrações eucarísticas que estão associadas”.
O que podemos esperar para as Festas da Vila que se realizam a 19, 20 e 21 de Julho? “Este ano e no seguimento da candidatura europeia a Património mundial da Unesco, preparada pela Federação Europeia dos sítios cluniacenses, relativa à igreja românica de Rates – único exemplar da Ordem de Cluny em Portugal – vamos aproveitar para reactivar a animação mais histórica. Portanto, para além da animação que temos tido com a participação das associações locais, vamos ter uma colaboração muito activa do Museu Municipal com os trajes típicos da época medieval e também com outros grupos de animação relacionados com essa época. Ou seja, vamos voltar ao modelo anterior, não quer dizer que seja para manter, mas este ano, especificamente, por esta questão cluniacense, vamos fazer uma animação mais de época. De resto, teremos a Tuna Académica de Coimbra entre outros grupos que estamos ainda a conversar”.
Paulo João destaca também a harmonia entre a Junta e as associações locais: “É talvez um dos maiores orgulhos que eu tenho. Sempre houve uma grande paz social em Rates e entre instituições. Para isso é preciso todos termos a capacidade para reivindicar, mas também a humildade perante o outro. Não estamos em tempos de impor nada a ninguém, estamos em tempos de dialogar e chegar a bom porto. Esse é um orgulho que eu tenho, acho que as entidades no geral reconhecem isso, embora também eu compreenda que nem sempre é possível a Junta de Freguesia dizer sim a tudo e pode, eventualmente, num ou outro aspecto, não ter correspondido àquilo que alguma instituição pretendia, mas no geral acho o saldo francamente positivo”.
Por: José Peixoto