Voz da Póvoa
 
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Uma Sombra Picada das Bexigas de João de Araújo Correia

Uma Sombra Picada das Bexigas de João de Araújo Correia

Cultura | 15 Maio 2021

Camilo teve este supremo dom de trabalho sobre uma língua composta, e por vezes incapaz de traduzir autores fiáveis, a mais dúctil de todas as línguas. Fialho de Almeida

                                                              ***

       «Meu filho Jorge ficou definitivamente doido, Milagres, alucinações dos ouvidos e da vista e inconsciência de si próprio, ódios implacáveis a determinadas pessoas – a lipomania extrema- tenho lido os especialistas, e receio sair doido desta leitura. Mau pai, minha avó materna e duas minhas tias morreram doidas. A mãe sabia-o e ocultava-mo-» Triste Ano em Seide, por Raquel Castelo Branco, Lisboa, 1925, pag 140

 

Uma Sombra Picada das Bexigas de João de Araújo Correia.

 

       Depois de muito desejar, ei-la agora em minha posse, esta obra rara, edição especial numerada, de 1973, da autoria de um grande escritor do Douro, João de Araújo Correia, médico e contista emérito. Mistérios de Fafe, foi o primeiro livro de Camilo que ele leu, pelos seus sete, oito anos.   

          O autor possui uma prosa castiça muito simples e treinada, que dá gosto ler. Refere-se ao texto de Aquilino sobre o mestre do Amor de Perdição, nestes termos: «grande escritor cismou na fealdade de Camilo como hipótese de côr camiliana.» (pag. 47) e, mais por diante: «Nem o Diabo é tão feio como o pintam nem Camilo era horroroso – como disse Aquilino. Basta ver-lhe os retratos. Camilo embora picado das bexigas, tinha os olhos fulgurantes, vasta cabeleira e, sobretudo, palavra perigosa. Diziam os coevos que atraía as mulheres como o doce atrai as moscas. Irmãos e maridos trancavam as portas e janelas à passagem de Camilo, mas o nosso Aquilino fechou os olhos a isto:» E, ainda: «Na Samardã, amou Camilo uma moça doentia. Se alguma o amou não sei. Aquilino nega a Camilo a graça de ser amado.» (pag. 56).

       No capítulo «Capital misterioso» o autor refere a casa do Lodeiro como um «ninho de pedra construído no século XVIII sem a magnificência e as proporções usadas naquele século. Vista de frente, é uma capela entre dois corpos de desigual arquitectura» (pag. 92).

     Diremos nós que esta casa repleta de recordações trágicas de Camilo e por ele referida, a dois passos de Tormes, situada a caminho do cemitério, faz com que, constantemente, a geografia camiliana se sobreponha à de Eça de Queiroz. Foi nesta casa que se deu o drama de Fanny Owen e de José Augusto, o impotente e complexo sujeito que viria a fazer a desgraça da infeliz jovem, depois de inutilmente, a ter raptado. Passo importante é aquele em que o autor afirma: «Havia no nicho de Camilo dois compartimentos separados. Num, reinava o método, a lógica, a autocrítica severa, a mão de rédea segura, no romance e no ensaio. Na outra, residia o descomando, o desequilíbrio, o descompasso de dores e desesperos» (pag. 124). O autor considera o estudo sobre Camilo, de Aquilino, «a mais deplorável das suas obras.» (pag. 143), referindo a Póvoa de Varzim como um dos lugares camilianos por excelência . «Camilo frequenta, como toda a gente sabe, a Póvoa de Varzim. Alugou casa no Passeio Alegre, na rua da Junqueira, provavelmente em outros locais. Homem movediço, é crível que a praia de lavradores, padres e morgados, de todo este Norte, o tenha conhecido em vários pontos mas o homem irrequieto, desassossegado como a ventania, veio a preferir a casa que me deu no goto com a sua esquisita arquitectura. Casa apalaçada, com o hotel em cima e botequim em baixo, ter-se-á acomodado, melhor que qualquer outra, ao seu prurido fidalgo e à sua amizade a botequins e pano verde» (pag. 148).

   «Camilo, não obstante o génio, ou porque foi um génio, é ainda hoje odiado, projectou grande sombra na face dos medíocres». (pag. 26). Quanto ao seu confronto com Eça de Queiroz, que naturalmente se impõe referir, o autor comenta arrazoadamente: «É triste que só haja em Portugal dois clubes literários. Parece que nunca existiu Camões nem outro engenho digno de apadrinhar clube. Mas faço votos por que se mantenham, com todas as abusões do fanatismo, a duas irmandades. Há muita cegueira num ou outro olho de solícito irmão, há muito entrudo na idolatria. Mas, quanta seriedade clara não há também junto do fanatismo? Há muita claridade e muito êxtase abençoáveis. Não se consinta que alguém se escarneça» (pag. 89).

       Em conclusão, diremos que com muito prazer e proveito se lê esta preciosa e ponderada obra, como peça importante da bibliografia do mestre. Eis a reflexão que aqui deixamos com entusiamo e prazer.

 

A. Campos Matos, Lisboa, 25 de Abril de 2021

 

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