Voz da Póvoa
 
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Uma Póvoa Clássica a Respirar Música há Quatro Décadas

Uma Póvoa Clássica a Respirar Música há Quatro Décadas

Cultura | 30 Agosto 2020

A primeira apresentação vem de longe, de um tempo livre e inquieto, inventado pelo grande pianista Sequeira Costa. Depois, durante 40 anos, João Marques, o professor, deu-lhe continuidade e grandeza. O Festival Internacional de Música da Póvoa apresenta entre os dias 9 e 24 de Setembro, uma viagem da música antiga à contemporânea, passando pela magia dos grandes compositores clássicos, mas também por composições em estreia Nacional e até Mundial. A 42ª edição, sobre a batuta do Director Artístico e programador Raul da Costa, oferece propostas para todos os gostos enriquecidos de sensibilidade e emoção.

Em ano excepcional, devido à pandemia, o festival encurtou-se no tempo e em número de espectáculos, mas a qualidade dos concertos e seus intérpretes continua: “A qualidade sempre foi sinónima do Festival. Em termos de concertos há menos e, menos público a assistir, mas por outro lado vamos chegar a mais gente com a ajuda da RTP. Ou seja, vai ser alargado de muitas outras maneiras. Depois, a pandemia que atravessamos, com o sector cultural a ser dos mais atingidos e, ter artistas desta qualidade, tanto portugueses, como estrangeiros, a fazer estas gravações, onde se vai notar o número escasso de público, é construir história. Há muitas outras coisas que vão estar dentro dessas gravações, em termos emocionais. Para além de ter mais público fora de portas, esta parceria com o Canal Público de televisão vai com certeza enriquecer o Festival e a própria RTP. Fazer isto neste momento da história é um salto grande que nos engrandece a todos”.

O pianista, Raul da Costa, nasceu na Póvoa de Varzim em 1993. Iniciou a sua formação musical aos 7 anos na Escola de Música e, como confessou, acompanha o Festival de Música da Póvoa há quase duas décadas, sem imaginar que assumiria nos últimos dois anos a sua Direcção Artística e programação.

“Sou um grão de areia neste imenso Festival. O que me alegra é saber que a minha relação com o Festival é muito maior que estes dois anos como director. Tinha 8 ou 9 anos quando comecei a assistir ao evento. Quando olho para trás, vejo uma programação muito rica em termos de estreias em Portugal ou mesmo mundiais. O meu antecessor, professor João Marques, tinha esse cuidado e um certo ouvido para descobrir talento. Convidava Ensembles que estavam ainda a começar e se tornavam anos depois históricos a nível mundial. O Festival tem também actualidade no que de bom se faz, aqui e lá fora. Este ano temos um pé no passado, fazemos o festival no presente, mas pensado para o futuro”.

Numa inquieta incerteza, ainda activa, a programação do Festival saltou do habitual mês de Julho para Setembro, mas as salas vão repetir-se. Raul Costa explica porquê: “ Teve muito a ver com a preparação anterior ao início da pandemia. As igrejas oferecem boas condições para a realização de concertos, desta vez com muito menos público. Este ano temos programado quatro concertos na Igreja Matriz, dois na Igreja Românica de Rates e três no Garrett. Depois, a preocupação com os músicos. Nós controlamos o que se passa no ensaio ou num concerto, mas os músicos têm outro tipo de contacto fora de portas e essa é a situação mais complicada da pandemia, continuar a manter o distanciamento social fora de portas. No palco tivemos esse cuidado, para que a distância entre os diferentes tipos de músicos pudesse ser respeitada sem afectar a música, mas também a escolha dos grupos e músicos, as suas peças a interpretar”.

O Momento é de Ouvir Falar a Música no Coração  

“Este ano é especial. Anunciei no ano passado a intenção de incluir pelo menos um concerto não clássico e tivemos um concerto de Jazz, que não acontecia há muitos anos no Festival. Este ano teríamos um grupo dos Estados Unidos, mas era impossível virem, porque todos os concertos com músicos daquele país foram cancelados na Europa. Mas, temos no programa concertos que vão ter muito impacto nesta altura cheia de incertezas, como o concerto de abertura, ‘Stabat Mater’ de Pergolesi, onde a sorte juntou pela primeira vez a nossa querida Raquel Camarinha e o contratenor Andreas Scholl, um cantor famosíssimo a nível mundial. A obra a interpretar é muito emocional, retrata as dores de Maria perante a crucificação de Jesus”. Enaltece Raúl da Costa.

E acrescenta: “Gosto de música, não pelo entretenimento, mas pela diferença que posso fazer no dia-a-dia. Isto não é um festival de entretenimento. Há obras que são mais fáceis de incluir, mas na vida temos todos momentos mais intimistas e não se deve passar por cima disso, nem renegar. Por isso, alguns dos programas, como o ‘Stabat Mater’ e o concerto do dia 15 de Setembro, ‘Morimur’ são bastante ligados a esta emoção, esta perda de alguém. E este ano muita gente sofreu a perda de alguém. Penso que só através da arte, alguma coisa se pode curar. Aceitam-se as dores, mas ultrapassam-se pela beleza da interpretação e da sonoridade. A escolha de alguns destes programas tem exactamente a ver com isso. Sei que as pessoas estão a passar por um momento complicado e que ajuda, ouvir algo que fala directamente aos corações”. 

Há muita viagem, muitos concertos que podem sempre ajudar, mas para o pianista, o segredo para criar a programação do Festival tem um nome: “Sigo muito o que aprendi com o professor João Marques, uma pessoa conhecedora e única. As gravações são sempre uma ajuda preciosa, mas há artistas que não conheço nem tenho qualquer ligação. Conheço muito bem o trabalho da soprano Raquel Camarinha ou do António Saiote, com quem criei laços de admiração, porque as suas carreiras são muito ricas a nível nacional e internacional. Agora, a maior parte dos músicos está aqui, não por razões pessoais, mas pela ideia de como se cria uma obra. Se me perguntam os concertos que quero ter, escolho aqueles que me tocam, gravações que me dizem algo e tento construir este puzzle que é o Festival. Depois, acontecem momentos felizes, como no dia 17 de Setembro, onde ‘Artemis Quartet’, um dos quartetos mais famosos do mundo, depois de uma série de concertos cancelados pela pandemia, acabou por calhar na Póvoa a estreia de ‘Vasks’, um dos compositores contemporâneos mais importantes. Este é um acontecimento mundial. O Festival vai estrear também várias obras a nível Nacional, num diálogo entre o público e os músicos”.

Para Raul da Costa, programar um festival nestas condições foi uma inquietação: “Ainda é porque a incerteza permanece e ninguém sabe quando termina. Fizemos tudo dentro do melhor possível e esperamos que corra bem. Criamos vários planos defensivos, mas estamos a falar sempre de um risco, de uma incerteza. Tenho que agradecer a toda a gente envolvida, desde a Direcção-Geral das Artes, a Câmara Municipal da Póvoa que acreditou e apoiou. De facto a cultura na Póvoa é das coisas mais presentes e faz este município diferente dos outros. Isto é reconhecido a nível nacional e internacional, graças à sua linha cultural, tanto no Correntes d’Escritas, como no Festival de Música. Apostar e querer acreditar neste ADN da Póvoa de Varzim, numa altura tão complicada é de louvar. Este é o meu festival do coração. É para isso que estou cá, dedico-me de corpo inteiro porque acredito no meu trabalho. Quando participo como artista em outros festivais tento ficar absolutamente à parte, porque gosto de ter as coisas bem separadas na minha cabeça. Numa altura em que se fazem pelo mundo muito poucos concertos, tento trazer ao Festival aquilo que acredito ser bom e que as pessoas precisam ouvir”.

O Músico e o Pianista não se Liga e Desliga Num Botão

O Festival Internacional de Música da Póvoa, para Raúl da Costa é respeitado a nível mundial “pela seriedade com que sempre trabalhou e se apresentou ao público, pelo número de concertos escolhido com rigor e exigência, pelo carinho que sempre foi demonstrado pelos artistas que, pela forma como são recebidos pelo público, nunca recusam voltar. O fruto de 42 anos de concertos fez crescer um público com o Festival e eu sou parte disso mesmo”.

E acrescenta uma riqueza cultural que nasceu com o Festival: “Tenho muito carinho pela Escola de Música da Póvoa que me acolheu com 7 anos e me fez querer ser músico. O Festival também ajudou muito o músico que hoje sou, porque todos os anos esperava ansioso que a programação saísse, que concertos é que poderia ver. Tendo esta vivência e agora trabalhando com vários membros da Escola na organização do Festival, tenho sempre que agradecer, a Emília Fernandes, João Amorim, e a comissão executiva, Rui Silva, Guilherme Cancujo e Ana Luísa Marques, caras que conheço desde sempre, que me acompanham e trabalham para isto acontecer. Todos acreditam no Festival e no futuro da Escola de Música e lutam por isso”.

Os músicos viajam muito, mas conhecem pouco: “Pessoalmente gosto de viajar sozinho. Antes disto tudo acontecer, tinha tido os meus concertos em Viena, Turquia e nos Estado Unidos. Gosto sempre de ter momentos para mim, para estar especialmente com as pessoas, as relações turísticas interessam-me menos. Para mim conhecer uma cidade é conhecer pessoas que lá vivem. Mas, cada músico é diferente, não podemos generalizar. Na Póvoa temos o mar à frente dos nossos hotéis, a nossa comida é excelente e os artistas ficam felizes com o que veem e comem. Sabemos também que cada um tem e quer a sua paz. Damos a liberdade de descobrirem por si o que desejam. No ano passado a orquestra Russa, como era a primeira vez que vinha a Portugal, viveu a Póvoa com muita intensidade”.

Desde Março que praticamente pararam os espectáculos, mas recordou Raul Costa, os músicos tiveram que continuar a ensaiar e a estudar as obras sem saberem quando voltariam ao palco: “Foi e continua a ser um ano terrivelmente triste. Não é só ter comida e pão na mesa, mas a necessidade interior que temos de partilhar, tal como o público de ouvir e assistir aos concertos. Tenho muitos amigos que sofrem bastante com esta situação. Há muita gente que precisa continuar para acreditar. Gostava de ter uma resposta mais positiva, mas este tempo bloqueia. É uma incerteza constante. Havia muitas pessoas que trabalhavam basicamente para os concertos. Claro que se descobriram outras formas, um outro amor pelo trabalho que se executa para si próprio. Ou seja, temos mais tempo para entrar dentro de uma obra. Mas, temos que reconhecer, o que nos faz andar para a frente é o facto de sabermos que vamos tocar para um público, ter oportunidade de partilhar todo o nosso empenho e sentimento”.

Como músico e intérprete Raul da Costa não acredita que isso possa influenciar futuras programações do Festival: “O que influencia na escolha é a experiência que somamos como músico, como ouvinte, como professor. Ou seja, a relação que temos com a música a nível geral. O meu instrumento é o piano, mas antes de ser pianista sou músico e, para mim a música é muito para além do piano. E o piano é muito mais que um instrumento. Quando toco piano tento pensar em muitos instrumentos juntos, como se os estivesse a tocar. O que me identifica como músico é o interesse por muitos e variados tipos de música. Ser músico é muito mais que um instrumento, o instrumento é o caminho para a obra, o bem maior que é a música. Um músico é um estado de vida, não se liga ou desliga no botão. A necessidade de sentir música com a necessidade de ouvir está ligada às emoções de cada um. Eu não consigo desligar e por isso, o Festival é uma coisa natural, um acréscimo à minha vida. Sendo eu o director e programador, isto que penso será espelhado no Festival. Espero que as pessoas compreendam, possam e saibam usufruir”.

José Peixoto

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