Voz da Póvoa
 
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Um pino no bowling

Um pino no bowling

Cultura | 21 Dezembro 2020

Na terra não se passava nada a não ser a infame miséria de nascer, disse o filósofo. E logo ao amanhecer, um corrupio de mulheres pela casa, antecipava que algo haveria de acontecer, embora não supostamente avisado. Se houvera alguém sabedor do que viria a suceder, nada revelara. Por isso, o rapaz mais pequeno da casa andava inquieto e enrolado no cobertor da serra tendo, como pequeno alívio catártico, acabado por fazer uma pontinha de xixi na cama. À mãe, disse que aquilo era uma pinga do chá de folha de laranjeira que, entretanto tinha tomado e que ao entrar na cama fungou e aquilo saiu-lhe, sem querer, pelo nariz. A mãe, naturalmente, fingiu acreditar e lá enxugou a pequena marca com um paninho embebido em água quente e o rapaz sossegou.

O certo é que já passava das três da tarde e a sesta mantinha-se desde a uma hora. A mãe sorrateira vai ao quarto e diz-lhe Afonsinho, meu amor acorda! Ele abrindo os olhos: deixa-me sonhar, está bem? E ali ficou estranhamente encolhido, de barriga para baixo. Era um rapaz com ar saloio e muito envergonhado perante os outros, o que lhe causava estados depressivos. Daquela maneira, pretendia, certamente, alhear-se do mundo duro, em que se sentia pino alvejado por palavras bowling. Para ele, os melhores dias da semana eram os sábados e domingos, mas também angustiantes, se, por obrigação familiar ou social, tivesse de sair de casa. Até que um dia arranjou uma bicicleta, ó liberdade das liberdades, dizia ir aqui e acolá, para sossego da progenitora e metia-se pelos caminhos que ladeavam campos e bouças. Onde sentia o seu apego, ferozmente belo à natureza viva que o envolvia e mimava de bons cheiros e de bons sons.

Fez-se homem levantado que mergulhava o corpo num tanque grande no verão e numa bacia no inverno. Conheceu a tábua do pão dependurada por uns arames ferrugentos nas velhas cozinhas das suas redondezas, sentindo a miséria envergonhada dos vizinhos pobres que suplicavam por trabalho. Aquele inverno de sessenta e quatro trouxe-lhe, entretanto, um segredo, tão auspicioso que temeu contá-lo seja a quem for, e que agora se predestina a fazê-lo. Sabe que a cozinha era de chão em terra batida e pelas paredes um leve corrimento de luz solar incidia nas frinchas das telhas nacionais, tendo-se espelhado naquela figura de menino jesus de barro transformando-o de imediato, ó mãe o menino jesus já trouxe eletricidade cá a casa, anda ver! A mãe solícita, lá apareceu, jogou-o no colo e sentada no chão disse-lhe: o Senhor dá-nos o sol, a chuva, a terra, as aves, os animais, as mulheres e os homens, só que não os reparte igualitariamente por todos e, a terra não me parece tão retangular como esta cozinha. Ao que o menino no chão e iluminado respondeu: nem a mim me parece redonda por tão espartilhada. De repente, ouve-se um trovão “ Ó filho, é Deus, o grande, está a ralhar, não gosta desta conversa”. E lá alaram até Belém do Pará. 

Texto Aurelino Costa / Ilustração: Karol Tonet

 

 

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