Voz da Póvoa
 
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Um Boletim Guardião da Cultura Poveira

Um Boletim Guardião da Cultura Poveira

Cultura | 21 Fevereiro 2021

A cidade veio de longe. Cresceu no sangue de antigos povos que legaram as suas vivências aos vindouros, através de artefactos e utensílios encontrados no ventre da terra ou nas primitivas construções de uma arquitectura desenhada na memória. Entre a agricultura, a caça e a pesca se ergueu a nossa civilização. Depois, com a escrita surgiu a necessidade de criar uma matriz local e, contá-la para memória futura. Hoje, sabemos que o relevo dos dias nos revela as figuras e os factos que nos ilustram a História.

Foi para afirmar uma matriz cultural que Fernando Barbosa fundou em 1958, na Póvoa de Varzim, o Boletim Cultural. Num percurso com 52 volumes publicados, seguiu-se na direcção o Dr. Flávio Gonçalves, Monsenhor Manuel Amorim e a Dr.ª Conceição Nogueira, que assumiu os destinos do “Guardião da Cultura Poveira”, em 2006.

A pandemia que nos obriga a um afastamento social não pode servir de desculpa para um distanciamento cultural. Não houve apresentação do 52º volume do Póvoa de Varzim Boletim Cultural. No entanto, a edição pode ser adquirida na Biblioteca Municipal, Museu, Arquivo e Posto de Turismo.

“Quando leccionei em Aguçadoura, escrevi um trabalho sobre Linguística e Etnografia da Freguesia de Aguçadoura, que foi publicado no Boletim Cultural em vários números, por Flávio Gonçalves, de quem era muito amiga. Actualmente, mantenho uma grande amizade com a irmã, a Maria Isabel, que vive no Porto e foi minha colega no colégio das Doroteias. Ia, muitas vezes, a casa dela, onde ouvia o irmão Flávio, no sótão, a cantar. Quando ele soube do trabalho que escrevi sobre Aguçadoura não me largou mais. Guardo, com muita saudade, uma caixa de postais, alguns em verso e sempre com a marca indelével do seu característico humor. Isto acontecia quando me atrasava a enviar o material para o Boletim. Agora, é que eu vejo a angústia que ele passava à espera dos artigos para publicar. Nem sempre cumpria os prazos, porque eu também estava a leccionar. Desde então, fiquei ligada ao Boletim. Quando o meu amigo Flávio faleceu, entrou o Padre Amorim para director, mas quem angariava os colaboradores era o Manuel Lopes, director da Biblioteca, que começou a pedir-me trabalhos. Por isso, desde os anos 60, do século XX, que sou colaboradora do Boletim Cultural” – recorda Maria da Conceição Gonçalves Nogueira, natural da Póvoa de Varzim e licenciada em Filologia Românica.

 Recuar à infância é reviver um tempo de felicidade: “Tive uma infância feliz, com uns pais que nos amavam muito. Com os meus cinco anos e meio de idade, a minha mãe dizia que não me podia aturar, que eu era muito rabina. Então, mandou-me para o Colégio das Doroteias (Colégio do Sagrado Coração de Jesus), que foram as minhas segundas mães. As freiras diziam que eu era neta delas e levavam-me a passear num grande quintal (atrás do colégio), a que chamavam ‘Quinta’. Fiquei no colégio até completar o 5º ano. As minhas professoras, de quem tenho muito boas recordações e saudade, foram as Doroteias, apenas ia ao Liceu fazer exames”.

O ensino sempre fascinou Conceição Nogueira: “Fiz exame de admissão ao Liceu, mas continuei nas Doroteias. Recordo que a minha professora de Português e curiosamente, de Matemática, era a Dona Maria Luísa Pinto Coelho. Um dia, mandou fazer uma redacção intitulada ‘Quando a Noite Desce…’ e anunciou que a melhor iria ser publicada no jornal. Por acaso, foi a minha. Desde aí, intensifiquei a minha paixão pela leitura e escrita. Concluído o 5º ano, eu queria continuar a estudar, mas na Póvoa de Varzim não havia o 6º e 7º. Queria muito ser ‘Professora de Português e Francês’, sem sequer saber que estava a referir-me ao Curso de Românicas. As freiras chamaram a minha mãe e pediram-lhe que me deixasse continuar a estudar no Colégio do Sardão, onde podia fazer o 6º e 7º anos, e depois seguiria para a Faculdade. A minha mãe veio para casa muito pesarosa e disse-me que o meu irmão Abel, desde pequeno, queria ser médico e que não aguentava com dois filhos na Universidade. Ainda se aconselhou com o professor Fernando Barbosa, que no entanto, reforçou a ideia de que eu deveria fazer a licenciatura em Românicas”.

E acrescenta: “A minha mãe resolveu mandar-me para Braga tirar o curso de professora, e depois, poderia continuar a estudar. Já professora do Ensino Primário e a leccionar, fiz o 6º e o 7º anos. O Dr.º Luís Amaro, cuja memória recordo com muita saudade, deu-me umas lições de Português, para fazer o 7º ano. O Padre João Marques deu-nos Grego, a mim e à Rute Branco, e o Dr. Albano Abreu, nosso amigo, explicações de Latim. Sendo bem sucedida nos exames, matriculei-me em Coimbra, no curso de Românicas, como voluntária. Nos 15 anos que trabalhei no Ensino Primário dei aulas em Aver-o-Mar e efectivei em Mouquim (Famalicão), conseguindo mais tarde vir para Aguçadoura. Quando acabei o curso em Coimbra, fui colocada em Braga no Liceu Sá de Miranda, onde estive 2 anos e um ano no Rainha Santa, no Porto. Depois, concorri e fiz estágio em 1972/73, no Liceu D. Manuel II, actual Rodrigues de Freitas. Concluído o estágio, concorri e fiquei efectiva no Liceu da Póvoa de Varzim, onde trabalhei 28 anos. Tenho muitas saudades do Ensino e da minha escola”.

O Boletim Cultural Espelha o Retrato de uma Comunidade

De colaboradora a directora do Boletim Cultural, através de um convite que a professora tentou recusar, mas o ex-aluno não cedeu: “Aposentei-me em 2001, mas antes de o fazer comecei a pensar como deveria preencher o meu tempo. Era muito amiga da Raquel Calafate, que foi professora de Biologia no Liceu, e se aposentou antes de mim. Ela andava numa escola de pintura na Filantrópica e como eu ia fazendo umas aguarelas em casa, convenceu-me a ir com ela. Frequentei aulas de pintura na Filantrópica, entre 2001 e 2006. Pelo meio, matriculei-me em inglês e conclui o curso do Wall Street English, na Praça do Almada. Ainda regressei lá para estudar literatura inglesa. Um dia, em 2006, recebo um telefonema do Dr. Luís Diamantino, meu antigo aluno e na altura, Vereador da Cultura, a convidar-me para tomar um café no Torreão, perto da minha casa. Quando lá cheguei, o Diamantino disse-me que iria fazer um pedido, mas não admitia um ‘não’. O convite era para dirigir o nosso Boletim Cultural. Com toda a minha consciente humildade, e disse-lhe que só queria ser colaboradora, nunca directora. E indiquei o nome do Dr. João Marques, infelizmente já desaparecido. O Dr. Diamantino não aceitou a proposta e manteve o convite. Desde 2006 que estou a dirigir o Boletim”.

O ontem não tarda: soma já 15 anos e 11 números do Boletim Cultural. Conceição Nogueira recorda o seu primeiro Boletim como directora: “O volume 40, de 2005/6, ainda foi dirigido por Monsenhor Manuel Amorim, mas faleceu antes do lançamento. O ano de 2006 foi fatídico para a cultura poveira – além de Monsenhor Amorim, perdemos o Dr. Jorge Barbosa, e a 14 de Agosto Manuel Lopes, que, antes de falecer, pediu que eu fizesse a revisão do volume 40. O meu primeiro número é o volume 41, com capa de Francisco Gomes de Amorim, editado em 2007. Recordo que antes do lançamento, o Sr. António da Tipografia Camões, convidou-me e ao Dr. Manuel Costa, para irmos à gráfica: abriu uma garrafa de champanhe e escreveu – 1º volume Póvoa de Varzim 11-12-2007. À Dr.ª Conceição Nogueira, por apostar na qualidade deste Boletim. O proprietário da Tipografia Camões António Baptista de Lima”.

E acrescenta: “É com certa emoção que leio esta dedicatória, porque recordo o momento em que erguemos os cálices de champanhe para comemorar este primeiro número sob a minha direcção. Não posso esquecer este acto carinhoso do Sr. António”.

O Boletim Cultural, por norma, aposta num tema central, mas abarca outros caminhos da cultura poveira e da comunidade: “Temos alguns números temáticos: lembro os volumes comemorativos do centenário da morte de Rocha Peixoto, do cinquentenário do nosso Boletim e do primeiro aniversário da morte do Dr. João Marques, mas a maior parte dos Boletins tem sempre um tema central, além de outros assuntos de carácter literário e sócio-cultural. O volume 52, o último que foi publicado, tem como tema central A Repatriação dos Pescadores Poveiros Emigrados no Brasil: “Os dois primeiros artigos, sabiamente escritos, respectivamente pelo Prof. Jorge Alves e pelo meu colega e amigo Fernando Souto, documentam bem o Centenário desse evento, assim como a capa e contracapa. Pretendemos comemorar a coragem desses heróis que voltaram à Povoa, apenas com um saquinho na mão, de tamancos e até descalços. Ou seja, regressaram na miséria, deixaram lá tudo, mas não quiseram perder a nacionalidade portuguesa”.

Para além deste tema que, como já foi dito, pretende comemorar o Centenário do Repatriamento dos Poveiros no Brasil, Conceição Nogueira abre as páginas ao conteúdo do Boletim: “Há outros temas de carácter literário, como o artigo do arquitecto Campos Matos, sobre Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão: O Essencial de Uma Amizade Equívoca. É um artigo originalíssimo, porque nunca ninguém descobrira que esta amizade que se julgava sincera, era, afinal, uma ‘amizade equívoca’. Campos Matos documenta, muito bem, através de cartas, o fingimento e a falsidade desta amizade. Temos depois um artigo meu, José Régio e a Póvoa, em que falo do Diana Bar, como escritório de escrita de José Régio. É, porém, um lugar de que tenho também muitas saudades. Antes do artigo de Campos Matos, há um de Franquelim Neiva Soares, sobre as Propriedades da igreja de Santa Maria da Estela. A seguir ao meu artigo, surge um de Adriano Cerejeira, muito interessante, com grande novidade, pois nunca ninguém tratara este tema, que é sobre os Suplementos Culturais e Revistas Literárias em especial, & etc, que se publicavam na Póvoa em finais do século XIX, princípios do século XX. Há também um artigo do professor João Marques, sobre Sequeira Costa e o Festival Internacional de Música da Costa Verde / Póvoa de Varzim, um artigo muito bem documentado e ilustrado. A seguir, Santos Graça e o Rancho Poveiro, tratado por Armando Marques. Segue-se um artigo do Carlos Carvalho Dias, que foi Arquitecto do Urbanismo na Póvoa, recordando esse tempo passado e a sua paixão por adquirir primeiras edições, nomeadamente a Epopeia dos Humildes, cuja releitura o emocionou”.

O Boletim, não fosse a Póvoa uma terra de Lobos-do-mar, abarca também os seus heróis: “Temos um artigo sobre o centenário da morte do Patrão Lagoa, da Dr.ª Maria de Jesus, técnica superior do nosso Museu. Depois vem o artigo do amigo José Peixoto, Uma Impaciência de Lanchas Desancoradas do Passado. É um artigo de que gostei muito, escrito com muita subjetividade, com muita poesia. O José Peixoto é um homem poeta. Aprecio muito as suas ideias e o modo metafórico e poético como as transmite. Em seguida, aparece o do Dr. Costa Carvalho, focando um aspecto de Francisco Gomes de Amorim, desconhecido da maioria das pessoas. Trata Gomes de Amorim como Revolucionário e Repórter de Rua. Muito interessante este artigo. Segue-se a Vária, que é uma secção do nosso Boletim destinada à memória de factos ocorridos durante o ano. Temos um texto do Dr. Afonso Barros Queirós, apresentando o livro intitulado Acantos Poveiros, do Prof. Cunha e Silva. Outro acontecimento importante foi a inauguração do Monumento ao Nando, músico, pintor e escultor. E, finalmente, o Boletim encerra com um pesar, uma nota triste e saudosa pelo partir de dois inesquecíveis poveiros, o Dr. Cruz Pontes e Rodgério Viana. O primeiro era um poveiro que foi professor Universitário em Coimbra, onde passou grande parte da sua vida. Isso tornou-o, pelo afastamento, esquecido dos seus conterrâneos. Ele esteve no Pensionato da Santa Casa da Misericórdia. Eu ia visitá-lo sempre que podia e ele dizia que eu era quase a única poveira que lá aparecia. O meu colega Fernando Souto também o visitava. O meu amigo Viana, cruzei-me com ele na véspera da sua morte, no Hospital da Luz. Falámos um bocadinho, bateu-me com a mão no ombro, dizendo-me ‘adeus’. E foi assim a nossa despedida”.

Podemos, pois, dizer que o Boletim Municipal é o verdadeiro Guardião da Memória Poveira: “É essa a melhor definição: Guardião da Memória Poveira. O Fernando Barbosa dizia – ‘Uma terra sem escrita é uma terra sem passado’. Por isso, escrevemos para registar a memória do que se vai passando na Póvoa, daquilo que sabemos e consideramos importante para ficar registado no nosso Boletim. É indispensável esta união entre passado, presente e futuro. No Boletim, recolhemos o que se tem passado, para que este presente seja transmitido às gerações futuras. Há aqui muita investigação. Tanto eu como a Dr.ª Lurdes Adriano e o Dr. Gustavo, estamos sempre atentos, por exemplo, a centenários de figuras ilustres ou datas históricas. O próximo Boletim, número 53, já está esquematizado, já contactei os futuros autores que, felizmente, acederam ao meu pedido com boa vontade, dedicação e generosidade, não esquecer que isto é um trabalho gratuito. Tenho já na minha posse, três artigos escritos pelos colaboradores, para 2022”.

Abrir o Véu Sem Chegar ao Céu do Próximo Boletim

“Já tenho em mãos um artigo da Dr.ª Maria de Jesus sobre Ana Dias da Silva, conhecida pela alcunha, ‘a Cabelo de Rato’ e um outro sobre Cego do Maio. Ainda não sei se poderemos publicar os dois. Outro artigo que já passou pela minha mão é do maestro Tiago Pereira, sobre a História da Capela Marta. Há também um artigo meu, sobre Agustina Bessa-Luís e a Póvoa, escrito ainda Agustina era viva. Tenho também um artigo da Dr.ª Sofia Teixeira, sobre os 20 anos da morte de seu pai, uma biografia. Outro é da Dr.ª Maria Alberta Gomes, sobre Alberto Gomes e a Póvoa de Varzim. Depois, já estão contactados o Prof. Jorge Alves, que aceitou continuar a colaborar no nosso Boletim e a Prof.ª Conceição Pereira Meireles. São artigos para comemorar o Centenário da Revista Seara Nova e sua relação com a Póvoa. Falta citar a Prof.ª Inês Amorim, que aceitou, também, de bom grado, o meu convite para um tema diferente. Depois verão. O Dr. Gustavo Vasconcelos, que trabalha na nossa Biblioteca, vai fazer um artigo sobre a Arquitectura habitacional na década de 1920. Finalmente, teremos um conjunto de artigos sobre a Pandemia e a Póvoa nas diversas áreas: Judiciária, Medicina, Sociologia, Religião, Educação e Cultura. Teremos um outro artigo sobre a Visão Histórica das Pandemias na Póvoa de Varzim”, revela Conceição Nogueira.

Pensados os temas e contactados os colaboradores, há a leitura imprescindível e a correcção dos textos: “Leio e devolvo os trabalhos para correcção. Não tenho culpa de terem escolhido uma professora de Português para directora do Boletim. Quando me devolvem os textos, vejo as correções que fizeram, por vezes, regressam à mão do colaborador, com mais um ou outro apontamento a alterar. A maquetização dos trabalhos é feita pela Dr.ª Lurdes e pelo Dr. Gustavo. A concepção gráfica e paginação do Boletim é da responsabilidade da Plenimagem, uma empresa muito dedicada e compreensível. Não posso deixar de citar os nomes de Margarida Ventura e de Adão Moreira. A Impressão é entregue por concurso público e nos dois últimos anos, tem sido a gráfica Diário do Minho a fazer esse trabalho. Há sempre uma primeira prova que nos é entregue, visualizamos todo o conjunto e esperamos a chegada das caixas com os 500 volumes prontos a passarem para as mãos dos nossos leitores”.  

Para Conceição Nogueira a longevidade do Boletim, “deve-se à grande dedicação e paixão dos seus directores, à dedicação e generosidade dos nossos doutos, eruditos, estudiosos colaboradores e também ao apoio imprescindível dos órgãos dirigentes da nossa Autarquia, tendo em vista a sua regularidade e continuidade. A confirmar esse empenhado interesse, os dois textos institucionais com que abre o nosso Boletim: Bela Surpresa!, da autoria do Eng.º Aires Pereira, e Histórias da História, do Dr. Luís Diamantino. Eu já estou quase como o Fernando Barbosa, que só publicou 4 números, mas quando se viu doente, a sua preocupação era a continuidade do Boletim. Tanto que ele indicou ao amigo Eiras e ao irmão Dr. Jorge Barbosa, por meio de uma carta que deixou fechada, que o seu sucessor seria Flávio Gonçalves. Se ele não aceitasse, que falassem a Mário Areias, um poveiro que vivia em Lisboa. Eu também já começo a pensar se não estará na hora de ser substituída. A vida é breve e termina quando menos se espera. Trabalho com muita dedicação e Amor, uma vez que está dentro da minha área de interesses. Mas só enquanto puder…”

Por:

José Peixoto

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