Voz da Póvoa
 
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Sou muito do que não quis ser

Sou muito do que não quis ser

Cultura | 19 Novembro 2025

 


O piano entrou sem bater à porta, dedo ante dedo pelo corredor do tempo a caminhar entre pausas e notas soltas, como se as paredes cedessem as mãos surpreendidas entraram pelas duplas e trios de teclas pretas, mas tal como no xadrez as brancas entram a rasgar o mundo, a ilustrar o grito, ouviam-se vozes pouco perceptíveis, cheguei a sentir um desequilíbrio no palco, mas quero acreditar que há uma intenção explosiva, afinal todas as guerras gritam aos ouvidos e ninguém as entende, só quem vive principescamente delas. Mas, “não tenhas medo”, a paz vai chegar.

O texto ‘Partitura da Guerra’ escreveu Valter Hugo Mãe, e Eduardo Faria encenou com gestos, emoções e vozes, depois, em palco os actores Eduardo Faria, Joana Luna, Joana Soares e Raúl da Costa que se militarizou ao piano com interpretações de Tchaikovsky, Rachmaninoff, Dmitri Shostakovich entre outros compositores, para sublinhar “o medo e a brutalidade da guerra, mas também o amor e a humanidade entre as personagens”. Da crueza da guerra levada ao palco o público viveu uma experiência de grande intensidade emocional.

O elenco prometia e a sala encheu para assistir à ‘Partitura da Guerra’ nos dias 7 e 8 de Novembro. É por isso que “as famílias grandes são como as populações robustas que nunca mais acabam e trazem sempre canções”. É um encantamento do velho Sasha que liberta o desejo dos muitos filhos terem muitos netos, “as famílias deviam ser milhares com bairros inteiros de pais e filhos onde toda a gente se amasse”.
Os dedos a dançar nas teclas do piano voltaram a roubar os meus olhos até que “muitos filhos iriam dizer sobre todas as coisas da vida, fazedores de tudo quanto eu não sei. Uma família assim, meu amor, era capaz de defender tudo dentro de si mesmo, o que é bom e o que é mau e escolher sempre o melhor”. 

A beleza de quem cria é não saber onde a vamos buscar, quer com o ouvido quer com olhar. Houve momentos “minha irmã” em que o texto desaparecia e entrava o piano no ouvido, outras o contrário, era como se o piano se calasse e a actriz falasse “matam mais por desespero do que por desconfiança”. Neste orquestrar entre palavas e sons não sei se erro no texto, “não quero morrer irmã, mesmo que neste momento só me resta esperar por isso” e a irmã respondeu: “mas se acontecesse, estaríamos salvas de tudo”. E o piano sempre a sublinhar cada diálogo, às vezes o silêncio provocante, comovente saído dos escombros, das ruínas, a lembrar olhos fundos, mas firmes. Quando entramos pela guerra dentro toca-nos uma visão surreal, fragmentada, tecida de uma dor que não se sente.

A luz apagou-se e o público encheu a sala de aplausos. Os intérpretes saíram e voltaram para agradecer à ‘razão’ do teatro acontecer: o público.

Por:José Peixoto

Fotos: Nelson Daires

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