Voz da Póvoa
 
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Recobro da Inusitada Paisagem

Recobro da Inusitada Paisagem

Cultura | 11 Junho 2020

Junho começou e em breve dará lugar ao sol quente e às temperaturas amenas. É um longo trajecto para nos aproximarmos de uma meta, já que há algum tempo despertamos vendados nesta longa marcha dos desprevenidos, surpresos pela imposição de recolhimento e demais regras de distanciamento físico e emocional. Tornou-se, assim, uma viagem que se galga sobre pedras, murmúrios, trevas e solidão. Alargou-se e estendeu-se um confinamento à escala global, aboliu-se por tempo indeterminado o desejo de exterior, redimensionando a geografia a ocupar. Aspiramos, agora, ainda que cautelosos, por dias povoados por encontros sem temeridade.

No entanto, o inimigo invisível continua à espreita. Devíamos, assim, aproveitar este intervalo existencial para reflectir sobre o que pretendemos mudar. É certo que nos iremos encontrar mais envelhecidos no final da borrasca, transportaremos o peso traumático de lembranças turvadas desta longa noite. A paisagem, entretanto, sossegou de gente, esperemos saber regressar ao interior de nós e da vida natural em transformação. Com o tempo imóvel, damos conta das mutações de luz, deparamo-nos com as sombras e fecundidade do silêncio, encontramos velhos pontos de fuga e saturação, auguramos novas rotas instruídas pelo vento, temendo retornar ao ponto inicial.

Infelizmente, a retoma da velha arquitectura do mundo não tardará, estará aí pronta para coagir novamente. Não serenará enquanto voragem e delapidação dos recursos existentes. Isto só irá acontecer se não soubermos intuir outra cartografia existencial que, colectivamente, aprovaríamos desenhar. Quiçá poderíamos arriscar outro jogo, facultar outras possibilidades e ambicionar novas e infinitas soluções, pôr termo a esta programação mecânica, iníqua e desumana. Que seja possível definir uma distinta caminhada global, urdir infinitas experiências e abalos emocionais próximos da natureza, idealizar percursos mais serenos e amáveis de trilhar e fiar, com colorações menos perturbantes e sombrias do presente.

 Este é também o tempo de relembrar essa infância de entusiasmos e descobertas, ainda os pueris mergulhos de energia infinita, as bicicletas com tanta ferrugem encostadas na parede à espera, a presença dos animais amigos em redor, o irromper do suor com a cabeça na relva a escutar os grilos, os jogos elaborados de improviso na rua de manhã até ao entardecer, a respiração continua de eflúvios de maresia e de algas expostas na fímbria da orla marítima ao cair da tarde. Assomados fantasmas deste itinerário imprevisto em sobressalto!

Texto: Fernando Nunes

Fotografia: Carlos Olyveira

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