Voz da Póvoa
 
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Queimar os Judas e Homenagear Armando Ramalho

Queimar os Judas e Homenagear Armando Ramalho

Cultura | 1 Abril 2021

A queimar o judas, todos menos o verdadeiro ou apenas uma festa de despedida do Inverno e uma alegre entrada da Primavera, mas a principal razão é homenagear o poeta Armando Ramalho, que nasceu em Massarelos a 1 de Janeiro de 1959 e residiu em Vila do Conde até seguir o caminho da eternidade. Depois, sim, é conveniente perceber que a 16ª Edição da Queima do Judas de Vila do Conde arrancou no passado dia 12 de Março, com uma conferência e vídeos performativos de homenagem ao poeta andarilho António Ramalho, mas o alvo da programação visa transferir do palco da rua, a arte e a criação, para as plataformas digitais a 3 de Abril, véspera de Páscoa, onde pode assistir em casa, à leitura do testamento e à queima do Judas.

Os quês e os porquês desta viagem ao fundo da palavra poema, numa altura em que o dentro das redes sociais continua a ser feito lá fora, levou-nos à conversa com Pedro Correia, director artístico da Queima do Judas de Vila do Conde, que nos explicou o lucro da emoção e do fazer: “Depois de uma edição zero em 1999, cada um foi fazer a sua vida e em 2005 começámos a criar uma parceria com a Escola Profissional que até hoje fomos trabalhando com diferentes pessoas e soubemos crescer em qualidade e dimensão. Depois, fui-me apaixonando por esta ideia de transformar a comunidade através da arte, da memória, da identidade. Hoje em dia os miúdos até acham que as galinhas nascem no restaurante ou na mercearia”.

O poeta a homenagear era bem conhecido dos vilacondenses. A sua poesia dispersa em folhas volante, ultrapassou fronteiras, mas sempre em mãos amigas: “Armando Ramalho acompanhou muitas gerações de pessoas em circuitos artísticos, mas fora deles também. Era um poeta da rua, dos cafés, dos bares, que fazia amizades com muita facilidade, sentava-se numa mesa qualquer com a licença de um sorriso. A sua obra é extensa, mas muito semeada, um poema, meia dúzia de poemas fotocopiados ou dactilografados, é tudo muito alternativo. Aqui na queima do Judas trabalhamos com mais de 2500 pessoas, de vários grupos de teatro amador de freguesias do concelho, jovens com 17 e 18 anos que nunca se cruzaram nem conheciam o Ramalho, que nos deixou há 4 anos. Para mim, é muito interessante abrir esta porta ao conhecimento”.

E Pedro Correia acrescenta: “Acho muito importante conhecermos estas figuras que à sua maneira fizeram muito pela arte, sem nunca terem sido institucionalizadas, municipalizadas, agora que se discute muito a municipalização da cultura. O Ramalho foi sempre acarinhado pelos amigos e pelas pessoas que o rodeavam. Agora, o poeta e o seu trabalho fazem parte da nossa identidade enquanto vilacondenses. Isso dá-me um gozo muito grande. Levo a minha arte a vários lugares do mundo, felizmente tenho essa possibilidade, mas sinto-me muito bem aqui a fazer este trabalho”.

A Queima do Judas acaba sempre por buscar alguém de Vila do Conde ou quem passou por lá e ganhou raízes: “O processo da Queima do Judas, apesar de eu ser o responsável, é de criação colectiva. Todos os anos, antes de se decidir uma temática é feita uma reunião onde há sempre uma chuva de ideias. Cada um vai apresentando as suas propostas e depois reajustando a um tema. Todos anos havia sempre alguém que propunha o poeta Ramalho, desta vez não se conseguiu adiar mais aquilo que um dia estava destinado a acontecer. Há nesta homenagem muita memória”.

 No ano passado já não existiu a Queima do Judas ao vivo. As redes sociais inauguraram o primeiro acto, que agora se repete, mas com muita novidade: “O primeiro confinamento a 11 de Março foi exactamente um mês antes da Queima do Judas, que acabou por ser suspensa nos moldes habituais. Tivemos que improvisar para que algo ficasse registado. Depois, surgiu a ideia do Judas Família, que no fundo propõe às pessoas um trabalho manual, para ser colocado nas janelas e nas varandas. Este ano a proposta é construírem cata-ventos coloridos, para colocarem nas varandas a anunciar a Primavera. Convém lembrar que o Judas representa, na sua forma primitiva, queimar o Inverno para libertar a Primavera. Este ano, estamos a melhorar e a reformular ideias. Como não havia boneco para queimarmos, propusemos de uma forma muito informal, que as pessoas fizessem o seu boneco em casa e, no seu quintal, em segurança o queimassem. Depois podiam partilhar connosco esse vídeo na internet. Recebemos vídeos, de Loures, de Coimbra, sei lá. Foi muito giro. Houve famílias que leram o testamento e queimaram o boneco. Este ano, criamos o título – Judas no Quintal. Quem tiver quintal pode colaborar e repetir a graça do ano passado”.

Uma outra proposta é a criação vídeo-poemas: “Lançámos o repto a artistas locais das artes performativas, da literatura e da música, para lerem alguns poemas do Ramalho e fazerem a sua interpretação em Vídeo. É um trabalho individual. Uma das ideias que surgiu também nesta história dos vídeo-poemas, foi gravar o proprietário de cada Bar, que o Ramalho frequentava, a ler um poema do homenageado. Estamos a colher para depois semear pelas pessoas que nos podem seguir nas redes sociais. Tínhamos um público que vinha em massa assistir ao espectáculo, mas desta vez vamos ter que chegar a este e outro público com poesia, com música, com momentos de arte, que tantas vezes nos distanciamos e precisamos tanto dela para crescer culturalmente, como pessoas, como indivíduos”.

O espectáculo é para ser visto nas redes sociais mas não é aí o ninho de criação, como explica Pedro Correia: “Vamos ter duas dinâmicas. Pessoalmente, não acredito no teatro na internet, o teatro é ao vivo, assim como as artes performativas, o resto é vídeo ou cinema. Por isso, pensámos em algumas soluções, dentro da internet e fora dela. Diluímos o espectáculo em pequenas actividades. Escrevemos um Guião e propusemos aos grupos de teatro que colaboram connosco, uma série de personagens. Vamos gravar uma radionovela onde os actores, dois de cada vez e em segurança sanitária, vão gravar a voz. Depois, misturamos e fazemos a radionovela, numa narrativa teatral, uma sátira humorística, distintiva da tradicional Queima do Judas de Vila do Conde”.

“Também quisemos desenvolver actividades fora da internet, sem público presencial, específico. Uma delas é a leitura da sentença, outra é um fanzine, onde encontrará alguns escritos de pessoas que foram convidadas a escrever algo sobre a sua vivência com o Ramalho. Este Fanzine vai estar em alguns pontos-chave da cidade, onde pode ser levantado por quem passa e repara. Outra das actividades fora da internet é o Judas em Movimento. Vamos construir a escultura do Judas e vamos fazê-lo viajar pela cidade por diferentes sítios. Vamos começar no alto do Mosteiro Santa Clara, no dia seguinte vamos para o Mercado Municipal, depois frente ao Tribunal, frente ao Parque de Jogos e finalmente no Largo da Alfandega, cinco sítios onde já foi queimado o Judas. Queremos surpreender com esta criativa escultura”, revela Pedro Correia.

A arte e a comunidade fomentam a ligação entre as pessoas. “Há aqui extensões culturais que têm que ser partilhadas. Tentamos fazer isso na Queima do Judas, diluindo também os estratos sociais, as classes etárias, com os velhotes a partilharem o palco com os miúdos. Numa comunidade há muitas segregações e a arte pode ajudar as pessoas a criarem amizades, ligações. O Capitalismo que governa o mundo actual estimula o individualismo e não invoca a comunidade. Se precisas vais comprar, não pedes ao vizinho emprestado, como antigamente. Estamos completamente isolados, mas com a ilusão que estamos a comunicar pela internet. Não é isso que precisamos para viver em harmonia. Os dispositivos tecnológicos que estão ao nosso alcance foram pensados para nos oferecer um vício, uma prisão sem grades. As pessoas sabem estar na rua, sabem como se comportar, na internet ainda não foi criada essa educação, saber como comportar-se socialmente. Estas actividades tiram as pessoas da tecnologia. Podem pegar na tesoura, cortar e construir o seu cata-vento. É uma proposta para viver fora da internet, uma pausa. Quanto a nós, vamos fazer a tradicional queima do boneco e a leitura do testamento, que será gravado em vídeo e colocado na internet, para ser visto nas redes sociais, a 3 de Abril. Este grande evento de rua vai ser dissolvido nestas actividades, mas é desta forma possível que vamos manter viva esta tradição milenar. Estamos no seculo XXI. A Queima do Judas está inserida nestes rituais de gestação, de mudança. A humanidade agradece pouco e deveríamos estar sempre agradecidos com a natureza, com a esperança na renovação”.

 Por: José Peixoto

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