Voz da Póvoa
 
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Que me levem meus fantasmas

Que me levem meus fantasmas

Cultura | 29 Novembro 2023

 

Curiosamente se lembrava de poucos factos da sua infância, o que mais lhe marcara foram as sensações.

A sensação de escutar a voz do próprio pai quando encostava o ouvido ao peito do tio mais novo durante um abraço, ainda que ele não pronunciasse as palavras que ela queria ouvir.
A sensação do vento a acariciar-lhe a face e bagunçar o cabelo enquanto baloiçava no balanço instalado sob a árvore que ficava em frente a casa grande.

A música vinda do acordeão do avô que fazia bater mais forte o seu coração enquanto movia os pés numa dança infantil e inocente…

Sonhara com todas essas coisas, durante noites a fio, e acordava sempre sem saber a razão.

Sonhara com o pai, com a avó, com o avô, já há tanto tempo estrelas.

Sonhara com alguns dos vivos também, sempre bons sonhos, ausentes daquele sentimento de rejeição que todavia acompanhava as memórias da família paterna.

Por raramente pensar acerca disso, passou a se perguntar:

Seriam esses sonhos o prenúncio da morte iminente? Ou apenas o seu subconsciente a fazer as pazes com uma parte da sua vida ainda latente na memória, de modo a aliviar o sentimento de não pertença que carregara consigo por tempos infindáveis.

Quanto ao avô, isso ela sabia, não era uma questão de fazer as pazes, mas sim de preencher o vazio da despedida que lhe fora negada.

Esses sonhos eram uma forma de curar a dor que causou o desaparecimento daquele que era o ser que ela mais amava no mundo, até então, e que não lhe fora permitido enterrar.

Tinha a certeza de que, pior que assistir ao enterro daqueles que se ama, é o vácuo que fica no peito quando o vento os leva de nós e deixa apenas a esperança de que um dia retornem, quanto mais não seja em devaneios.

Deu-se conta, por fim, que aqueles estranhos sonhos representavam um exorcismo das fantasmas que ela carregara consigo por anos, sem disso se aperceber.

Já tardava a hora de entregá-los aos ventos de Iansã, para que ela, gentilmente, os encaminhasse a Órun.

Quando presos nas nossas dores, os espíritos sofrem e, sem querer, fazem sofrer!

Maria Beck Pombo

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