O desfiar das memórias prossegue dia fora.
Na casa onde está hoje um dos poucos locais da Póvoa onde se come um peixe decente, o restaurante ”Churrasqueira Ibérica” (cuja reabertura sob a direção da D. Cândida e do Sr Costa é ansiosamente aguardada pelos muitos e fieis clientes), morava naquele tempo o Sr.António Touguinha mestre sapateiro, por alcunha o Sardinha que herdara do avô construtor de barcos sardinheiros. Às 8,30 da manhã de cigarro a canto da boca abria as portas para mais um dia a consertar calçado, aplicar meias solas, substituir gáspeas e, se sobrasse tempo, dar um adianto nas encomendas de sapatos por medida que era trabalho mais exigente.
Vivia com a mulher, Maria Augusta, a filha Maria do Carmo e o filho Joaquim, tinha ainda dois filhos mais velhos que a guerra colonial empurrara para a vida militar.
Porte imponente com mais de dois metros, por vezes, quando a testosterona fazia aquecer os ânimos entre os clientes da dona Aida do outro lado da rua, era chamado para apartar zaragatas.
Continuando o dia, às 9 horas apresentava-se na ampla moradia do capitão Faria o seu impedido - soldado designado para servir um oficial - com os géneros alimentícios levantados a preço reduzido no armazém da “Manutenção Miltar”. Depois tratava do jardim e do quintal aproveitando todas as oportunidades para namoriscar a empregada Ricardina que se demorava a estender a roupa no coradouro sob a vigilância atenta, mas tolerante, da D. Teresinha, a patroa.
A carreira militar do capitão Faria foi muito prejudicada pelo envolvimento no apoio ao efémero presidente da República Sidónio Pais que lhe valeu a passagem compulsiva à reserva. Figura simpática, dono de uma surdez que procurava contrariar com um pirraguiar muito característico, Era casado com a D. Teresinha, elegante senhora de esmerada educação e pai da, então, jovem Isália. Às tardes frequentavam as tertúlias do Palace Hotel e do Diana Bar.
Mais adiante na manhã, precedidas pelos seus pregões chegavam as Peixeiras de pernas redondas, descalças para andarem mais lestas, equilibrando prodigiosamente na cabeça as pesadas gamelas de madeira cheias de peixe.
Para grande surpresa minha há pouco tempo voltei a ouvir aquela mesma estridente sonoridade, desta feita, pela voz das peixeiras das ruas de Luanda... “Malhas que o império tece”, diria o poeta. (continua)
João Sousa Lima